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quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O segredo que o ex-Presidente Itamar Franco guardou até o fim

Politica - Brasil


O segredo que Itamar guardou até o fim: o dia em que recebeu,na Presidência, uma proposta mais “tenebrosa” do que fechar o Congresso Nacional



 G1 - Geneton Moraes Neto


Definitivamente, “Itamar não é fácil”. A presidência da República também não. Ponto. Parágrafo.


Quando assumiu o poder, no rastro do furacão de denúncias que varreu Fernando Collor do Palácio do Planalto, Itamar Franco aprendeu logo duas lições. Primeira: ao contrário do que as aparências fazem supor, a presidência é, essencialmente, um cargo solitário. (Daqui a pouco, ele falará sobre a sensação de ver desfilar diante dos olhos, em seus “momentos de reclusão” palaciana, nos fins de noite, as imagens de tudo o que poderia acontecer num país eternamente sujeito a solavancos.)


 
Segunda lição: quem ocupa a presidência deve estar preparado para ouvir propostas capazes de tirar o sono. Itamar Franco seria surpreendido pela proposta de um grupo de parlamentares – e se o presidente, num arroubo, fechasse o Congresso Nacional para depurar o parlamento da presença de roedores do dinheiro público?



O depoimento que o ex-presidente gravará neste final da manhã foi precedido de incertezas tipicamente itamarinas: durante quatro meses, houve troca de e-mails e telefonemas com assessores do homem, em Juiz Fora e na Embaixada do Brasil em Roma. A matéria complexa chamada Itamar Franco poderia render um curso intensivo: as aulas valeriam inclusive para amigos próximos- que, somente assim, aprenderiam a antever as reações do ex-presidente. Forasteiros, como repórteres interessados em extrair confissões da esfinge, aprendem logo a lição: nada é cem por cento fácil com ele.


Lá vem ele. São onze da manhã. Itamar prefere gravar a entrevista na sede da TV Panorama, em Juiz de Fora. Quando desce do banco traseiro de um carro de vidros escuros, exibe a inconfundível contribuição capilar dada à iconografia política brasileira: o célebre topete, alegria dos cartunistas. Não faz frio, mas Itamar enverga um suéter sob o paletó azul escuro. A gravata é vermelha.


Como se fosse um candidato prestes a debater com adversários eleitorais, o ex-presidente traz debaixo do braço uma pasta com documentos que compulsará para reforçar o que diz. Guarda com especial cuidado um texto em que o ex-ministro Delfim Netto elogia a performance do governo Itamar na área da economia. As palavras de Delfim são a arma que Itamar faz questão de empunhar para se defender da rejeição que (ele jura) São Paulo lhe devota. Não se conhecem demonstrações da suposta rejeição paulista a Itamar. Mas, na intricada psicologia itamarina, há sempre espaço vago para acomodar desconfianças desse calibre.


Uma frase famosa, atribuída a Tancredo Neves, diz que Itamar guarda rancor na geladeira. Eis um exemplo: o ex-presidente não engole até hoje a capa que a revista Veja lhe dedicou no início do mandato, com uma manchete que questionava a estatura do ministério recém-nomeado. Quando Itamar deixou o governo, contudo, a mesmíssima Veja publicou um balanço que lhe era francamente favorável.



Assinada pelo jornalista Roberto Pompeu de Toledo, a longa matéria – “Enfim, um presidente que deu certo” – lembrava o marco zero da era Itamar: “Um veterano sócio do clube juiz-forano, Mauro Durante, já advertira, semanas antes, ao observar que o movimento no gabinete do vice aumentava na medida em que se tornava mais real o impeachment de Collor: ‘Os urubus estão chegando’. Agora, urubus, perigosas águias, pacíficas pombas, papagaios tagarelas e caladas corujas, sem esquecer os tucanos, comprimiam-se naquele pequeno espaço, em que encontravam um presidente tão falto de solenidade que nem preparara discurso para a ocasião”.


Pois bem: Itamar, hoje, não cita os elogios da revista. Prefere guardar, em prateleira de honra da geladeira dos rancores, a capa que o enfureceu. “Itamar não é fácil” é a frase que se ouve à exaustão entre os que tiveram a oportunidade de conviver com ele.


Quando convidado por Fernando Collor para ser candidato a vice, nas eleições presidenciais de 1989, Itamar Franco protagonizou de novo intermináveis cenas de suspense antes de tomar a decisão. Disse “sim”. Terminou virando presidente, o que lhe garantiu de uma vez por todas a fama de “sortudo”. Itamar Franco aceita de bom grado o adjetivo, mas despachará diretamente para a geladeira dos rancores quem disser que ele escalou a rampa da política por obra e graça do “acaso”. Com uma ponta de irritação, lembra que virou presidente não por acaso, mas porque a Constituição assim determinava. Recusa-se a estender a pesada troca de farpas com o antigo cabeça-de-chapa, Collor. Fora da gravação, diz que começou a discordar do então presidente já na primeira semana de governo, quando do traumático confisco do dinheiro depositado em cadernetas de poupança e em contas correntes. “Ali aconteceu o primeiro conflito”, confessa.


Os vocábulos estocados nos dicionários da língua portuguesa não são suficientes para adjetivar a personalidade do engenheiro Itamar Augusto Cautiero Franco. O homem já foi chamado de temperamental. Imprevisível. Surpreendente. Indecifrável. Enigmático. Um adjetivo, contudo, ficou colado ao nome de Itamar Franco quase como se fosse outro sobrenome: “mercurial”. O problema é que a palavra não existe nos dicionários – pelo menos, não no sentido usado pelos cronistas políticos para se referir ao ex-presidente. Lingüistas, correi: Itamar Franco conseguiu criar um problema para os dicionaristas.


Dono de uma coluna que trata da língua portuguesa no site da revista eletrônica No Mínimo, o jornalista Sérgio Rodrigues foi abordado por um leitor intrigado com o uso da palavra “mercurial” para definir personalidades sujeitas a rompantes – como, por exemplo, o presidente da Argentina, Nestor Kirchner, capaz de abandonar pelo meio uma reunião internacional, sem disfarçar o tédio ou o descontentamento. Rodrigues foi a campo para matar a curiosidade do leitor: de fato, lexicógrafos brasileiros limitam-se a dar ao adjetivo mercurial o sentido de “relativo a mercúrio”. Nada a ver com oscilações de temperamento. O que explica, então, o uso da palavra com sentido tão diferente?


A explicação do tira-dúvidas Rodrigues: “Mercurial é um estrangeirismo semântico, isto é, uma palavra que teve o sentido tradicional alterado ou estendido por contágio de outro idioma. Em dicionários de inglês, encontraremos a seguinte definição: ‘sujeito a alterações bruscas e imprevisíveis; que tem comportamento errático; temperamental’. Exatamente como Kirchner, o bocejador. Ou, a propósito, Itamar Franco, certamente a pessoa que mais foi chamada de ‘mercurial’ na história da imprensa brasileira”. Resumo da ópera: para tentar definir Itamar Franco, os cronistas tiveram de recorrer aos dicionários de inglês.


Quando fala, como vai fazer agora, a esfinge de Minas sabe guardar segredos. Cita, mas não revela, um conselho “tenebroso” que teria recebido enquanto ocupava a presidência – algo ainda pior do que a sugestão de fechar o Congresso. Mas termina fornecendo pistas reveladoras sobre os métodos que seguiu quando era o homem mais poderoso do Brasil. Admite que passava a imagem de um presidente cerceado pelo poderoso “primeiro-ministro” Fernando Henrique Cardoso. Mas avisa aos navegantes: a encenação era planejada. Não havia amadorismo ali.


“Itamar não é fácil”: até as pedras das ruas de Juiz de Fora sabem que o ex-prefeito, ex-senador, ex-governador e ex-presidente nunca foi dado a fazer confidências a repórteres. Quando baixa a guarda, porém, o mercurial-mor da República é capaz de produzir depoimentos reveladores para quem tenta entender o enigma Itamar Franco.


POLÍTICOS SUGERIRAM AO PRESIDENTE ITAMAR QUE FECHASSE ,POR UM TEMPO, O CONGRESSO NACIONAL


Que segredo o senhor teve de guardar quando estava na presidência mas hoje pode contar?

 
Não sei se posso contar todos os segredos. De pronto, posso mencionar um, ocorrido quando assumimos o governo. Dentro da turbulência e da falta de auto-estima que o País vivia, nosso primeiro objetivo, naquele momento, era a manutenção do estado de direito e da democracia. Eu, particularmente, tinha lutado pela democracia desde jovem, desde que tinha sido prefeito de Juiz de Fora. A primeira preocupação, portanto, era essa.


Quando estava tentando formar o ministério, falei com uma figura muito importante, que ocuparia um cargo fundamental. A resposta que obtive foi: “Itamar, gosto tanto de você, mas, pelo amor de Deus, me deixe onde estou, porque você não vai durar 48 horas na presidência”. Aquilo realmente me trouxe preocupação.


Resolvi substituir os ministros militares, por quem tinha muito respeito. Sempre tive, aliás, muito respeito pelas Forças Armadas. Mas eu tinha de fazer a substituição dos ministros militares. Fernando Henrique Cardoso, a quem nós já havíamos escolhido para ser ministro das Relações Exteriores, assustou-se um pouco: achou que aquilo poderia impedir a continuidade do governo.


Tivemos durante algum tempo a sensação de que poderia não haver uma continuidade – sobretudo depois que determinada revista, já na primeira semana após a nossa posse, publicou, na capa, um título provocado pelo fato de que não havíamos nomeado nenhum ministro de São Paulo para a área do Ministério da Fazenda ou do Planejamento. Tínhamos escolhido um nordestino e um mineiro: Gustavo Krause, para a Fazenda, e Paulo Haddad, para o Planejamento, dois grandes ministros, dois grandes amigos. Mas a revista veio assim: “Ministros pífios”(O ex-presidente refere-se à Veja – que, na edição de 7 de outubro de 1992, estampava na capa o seguinte título: “Início pífio: Itamar monta um ministério de compadres”). A gente já imaginava que atrás daqueles “ministros pífios” poderia haver outro movimento…


O importante é que, ao longo do processo que vivi como presidente da República, sempre me preocupei, até por formação, com a manutenção do estado de direito. É uma formação que vem de dentro de casa e também da atividade política, desde os tempos de prefeito da minha querida cidade de Juiz de Fora. Tantos lutaram pelo estado de direito, um ideal que perseguimos ao longo da vida. Queríamos também dar ao País uma nova ordem econômica, o que terminou acontecendo, realmente.


É verdade que o senhor recebeu uma sugestão para fechar o Congresso?


Você vai me colocar numa situação difícil. Mas é verdade. Só não vou dizer o nome dos parlamentares. Vou preservar o nome dos parlamentares porque acho que devo manter esse detalhe sem uma revelação pública. Nós estávamos no palácio, quando dois deputados e um senador entraram de repente, abruptamente, no gabinete e disseram: “O Congresso enfrenta uma crise muito séria. Há corrupção generalizada na área da comissão de orçamento. Quem sabe, você fecharia o Congresso? Faria uma limpeza e, então, daríamos uma nova ordem institucional ao País”.


Falei: “Não! Não! Eu quebraria tudo aquilo que aprendi desde jovem, tudo aquilo que sinto. O Congresso é fundamental num processo democrático. Comigo não contem! Vamos resolver a crise no Congresso. O governo dará todo o apoio que for necessário”. Tanto deu que criou uma comissão de notáveis, encarregada de dar tudo aquilo que a comissão orçamentária precisasse. O que se viu ? Deputados foram cassados.


Quando ouvi a proposta, vivi uma hora difícil. Houve uma segunda vez, um diálogo mais particular. “Vamos fechar o Congresso, vamos limpar, vamos fazer assim, tipo De Gaulle?” (Em meio à crise provocada pelos protestos de estudantes e operários em 1968 em Paris, o general Charles De Gaulle, presidente da França, dissolveu o parlamento, convocou novas eleições e obteve grande vitória eleitoral). Respondi: “Como ‘tipo De Gaulle’? Nós estamos longe da França! Vamos manter a situação. A minha idéia é: custe o que custar, nós entregaremos a faixa ao novo presidente da República, que será eleito democraticamente, como exige e quer a sociedade brasileira. Tenho pedido a Deus que me dê sempre humildade, sabedoria e, sobretudo, equilíbrio para que possa entregar o governo ao sucessor de uma maneira democrática”.


Em que altura do mandato o senhor recebeu a sugestão dos deputados e do senador para fechar o Congresso Nacional?


A proposta foi feita logo que houve a crise da Comissão de Orçamento. Deve ter sido em outubro, novembro de 1993. A crise continuou em 1994. Por que fechar o Congresso? Por que o Congresso não poderia resolver os seus problemas? Há um aspecto importante: em toda crise, sempre respeitamos as decisões do Congresso. Mas, quando a crise ocorria no Executivo, nós sustávamos imediatamente o problema.


Tive um problema com o chefe da Casa Civil, Henrique Hargreaves, amigo fraternal, a quem eu conhecia há anos. O pai de Hargreaves tinha sido meu líder na Câmara dos Deputados. Tenho, portanto, uma amizade fraterna com o ministro Henrique Hargreaves. Quando houve um episódio em que estavam querendo envolvê-lo, o próprio Hargreaves me procurou: “Itamar, é melhor eu sair. Depois, se você quiser, volto. Mas só depois que eu resolver o problema”. Assim aconteceu. (Acusado de ter ligações com irregularidades descobertas na Comissão de Orçamento do Congresso, o chefe da Casa Civil se afastou em novembro de 1993 e voltou ao cargo em fevereiro de 1994, depois de inocentado.)


O então ministro da Fazenda, hoje deputado, Eliseu Resende, é um grande amigo que tenho. Mas eu dizia: “Você é o ministro. Quando o Senado da República começa a discutir quem pagou suas diárias de hotel em Nova York, diminui muito o ministro da Fazenda. Infelizmente, você não pode continuar até resolver esse problema”. (Eliseu Resende perdeu o cargo depois da publicação de denúncias de que favoreceria a empreiteira Norberto Odebrecht). A mesma coisa aconteceu com o ministro das Minas e Energia que, de repente, faz um bilhete em que dizia que uma obra deveria ser dirigida para apoiar o candidato Fernando Henrique Cardoso. Tive de tirá-lo também. (Em memorando interno que vazou para a imprensa, o então ministro de Minas e Energia, Alexis Stepanenko, recomendava a assessores que programassem a inauguração de obras para antes das eleições.)


Internamente, portanto, agíamos na mesma hora. Não deixávamos. Podem me negar tudo – menos a percepção de que, em qualquer crise, nós sabíamos que o poder legislativo deveria ter, sempre, a solução dos problemas atinentes.


UM MISTÉRIO : O CONSELHO “TENEBROSO” QUE ITAMAR RECEBEU ERA AINDA “PIOR” DO QUE FECHAR O CONGRESSO


Qual foi o pior conselho que o senhor ouviu quando era presidente da República?


Prefiro não dizer. Recebi conselhos complicados. Em um regime presidencialista, o presidente é um homem solitário. Não se deve achar que o presidente tem aqueles que o cercam, os amigos, os ministros. É diferente quando o presidente vai para o quarto: em seus momentos de reclusão, ele vê passar rapidamente diante dos olhos e na mente tudo o que acontece e o que pode acontecer no País. Certos conselhos que recebi prefiro não revelar: foram tão tenebrosos que prefiro lembrar das coisas boas do meu governo.


Mas o pior foi o de fechar o Congresso?


Houve um pior.


Não quer dar nenhuma pista?


Não. Mas vamos ser sinceros: fechar o Congresso é complicadíssimo. Tivemos um presidente que fechou o Congresso durante dias. (O Congresso Nacional foi posto pela última vez em recesso no governo do general Ernesto Geisel, em abril de 1977, com base no Ato Institucional nº 5 – que conferiu poderes ilimitados ao Poder Executivo de dezembro de 1968 a outubro de 1978). Não foi bom para o País. Como não é boa para o País nenhuma crise. O governo acha que a crise não existe. Pensa que a crise pode ser tamponada e escondida, tenta impedir que uma Comissão Parlamentar de Inquérito se instale. Isso é mau para o País. Porque a crise se agrava e se aprofunda. É o que acontece também quando o presidente resolve manter nos cargos elementos do governo que estão processados pelo Supremo Tribunal Federal ou acusados deste ou daquele delito. Não estou entrando no mérito. Mas estou dizendo que são quistos que não devem existir. Isso, no entanto, é problema de cada presidente.


Qual foi o momento mais dramático que o senhor viveu no Palácio do Planalto?


Quer queira ou não, o presidente é um homem solitário no regime presidencialista – sobretudo, nas crises e nos momentos em que precisa tomar decisões difíceis. São decisões que, às vezes, chocam a alma e a mente do presidente. Defendo o regime parlamentarista desde que era rapaz, desde os tempos de estudante de engenharia. Basta dizer que o meu diretório acadêmico foi um dos primeiros a imprimir o parlamentarismo no estatuto. Imagine só: engenheiros estudando o parlamentarismo! Coincidentemente, fui orador da turma de engenharia: meu paraninfo, o doutor José Bonifácio, fez um discurso de apologia ao parlamentarismo, uma idéia que sempre me impregnou.

O parlamentarismo resolve facilmente as crises. É o que se vê na Itália. O presidente fica imune a qualquer crise. Cai o primeiro-ministro ou cai o gabinete, mas a nação não sofre nenhuma perturbação forte. Já as turbulências do presidencialismo podem levar a crises institucionais, se não se tomar cuidado. São crises institucionais que, às vezes, independem do presidente e independem da própria sociedade. Mas, quando a crise avança… Costuma-se dizer no Senado: “A gente sabe como uma CPI começa, mas nunca sabe como termina”.


Os momentos mais dramáticos foram as primeiras noites. Aquilo martelava os meus ouvidos: “Não dura 48 horas. Não dura 48 horas.” Devo dizer que aquilo não apenas martelava os ouvidos, mas machucava a alma e obrigava a mente a achar que aquela era uma expressão que não vingaria num país que tinha lutado tanto para alcançar a democracia.


Qual foi o comentário mais surpreendente que o senhor ouviu de um dirigente estrangeiro?


Sempre imaginaram que o Brasil não era um país realmente democrata. Pensavam que não éramos um país que buscava, como sempre buscou, o estado de direito. O Brasil vivia sob um estado de direito no final do meu governo. Fomos nessa época, em dezembro de 1994, à famosa Cúpula das Américas, a reunião em que se ia discutir a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), em Miami.


Resolvi levar comigo o presidente eleito Fernando Henrique Cardoso. Eu era o presidente da República, ele era o presidente eleito. O fato de eu levar o presidente eleito Fernando Henrique Cardoso e dar a ele todas as honras, a ponto até de me afastar um pouco, surpreendeu aos que pensaram “O Brasil, então, mudou! O Brasil tem um presidente que traz o presidente eleito!” Por que eu levei? Porque ele tinha sido eleito por nós. A eleição de Fernando Henrique Cardoso dependeu do Plano Real, sobretudo. Pode ele não gostar, porque costuma dizer que ele é quem fez o Plano Real.


Não discuto nem brigo: um dia, vão ver que a assinatura não foi a de Fernando Henrique. Porque muitos trabalharam no Plano Real: Paulo Haddad, Gustavo Krause, Eliseu Resende, Fernando Henrique Cardoso e o grande sacerdote do plano, o ministro da Fazenda, Rubens Ricúpero. Lamentavelmente, o ministro Ricúpero teve de sair, pelas condições que todo o Brasil conhece. Depois, veio o ministro Ciro Gomes, a quem muito devo também. Mas, naquele instante, Fernando Henrique se agarrou ao Plano Real. Como o plano não era uma planta de beira de rio, que vai embora na primeira enchente, Fernando Henrique ficou agarrado a ele. Assim, elegeu-se, independentemente de todas as qualidades que tenha.


(Ao todo, o presidente Itamar teve seis ministros da Fazenda: Gustavo Krause- outubro de 1992 a janeiro de 1993;Paulo Haddad- janeiro a março de 1993; Eliseu Resende- março a maio de 1993; Fernando Henrique Cardoso- maio de 1993 a abril de 1994; Rubens Ricupero – abril a setembro de 1994; Ciro Gomes- setembro de 1994 a janeiro de 1995.)


Quando o presidente eleito Fernando Henrique foi comigo para Miami, deixei que ele aparecesse sempre em primeiro plano. Em outras ocasiões, durante meu governo, deixei que ele aparecesse em primeiro plano, ao contrário do que esperavam os que não o queriam como meu candidato. Eu, às vezes, até me afastava. Ria quando a imprensa dizia: “Fernando Henrique é o primeiro-ministro…”


Eu até achava bom, porque aquilo favorecia um homem que, nas primeiras pesquisas (eleitorais), tinha 16% (de intenções de voto) contra 44% de Lula. Fernando Henrique, então, precisava aparecer comigo. Isso era feito não porque eu fosse bobo: era proposital! Mas a imprensa achava que eu era bobo. Fui deixando Fernando Henrique ser “primeiro-ministro”. Preciso dizer, aqui, o seguinte: depois de muito tempo na história republicana, nós fizemos o nosso sucessor – e sem usar a máquina administrativa!


Quando levei o presidente eleito comigo para a reunião de Miami, presidentes que ali estavam – acredito que até o presidente Bill Clinton – notaram: “Interessante – o Brasil traz o presidente eleito. O processo democrático vai ter continuidade com Fernando Henrique Cardoso”.


O senhor nomeou Fernando Henrique Cardoso ministro da Fazenda, no Diário Oficial, sem que ele tivesse aceitado o convite?


Eu tinha enfrentado uma crise, triste, para mim: a destituição do ministro Eliseu Resende, às duas e meia da madrugada, quando eu disse a ele o que pensava em relação ao problema discutido no Senado da República. Peguei o telefone: “Fernando, estou com necessidade de um ministro da Fazenda. Vejo que você, apesar de sociólogo, tem as qualificações para assumir neste momento…” Diga-se de passagem que nós nos dávamos muito bem na época. Disse a Fernando: “Se você pudesse assumir o Ministério da Fazenda…” Fernando Henrique não me disse nem sim nem não. Ficou de pensar. Mas resolvi publicar a nomeação. Se ele não quisesse, eu teria revogado.


Isso foi uma maneira de forçá-lo a aceitar?


Fez bem a ele.


ITAMAR FALA DE UM ASSUNTO QUE O INCOMODA : O “CONSTRANGIMENTO” DE TER SIDO FOTOGRAFADO, NUM CAMAROTE DO SAMBÓDROMO, AO LADO DE UMA MODELO QUE NÃO USAVA CALCINHA


O fato de uma modelo ter sido fotografada ao lado do senhor, numa pose indiscreta, foi o momento mais constrangedor que o senhor viveu como presidente da República?


Aquele foi o momento mais constrangedor. Mas se aquela modelo entrou no camarote, pergunto: eu poderia pôr um espelho embaixo, para verificar se a pessoa estava nua? Não tinha jeito! Não podia fazer. Ou podia pôr um espelhinho? Se soubesse, talvez pusesse, sim, um espelho grande, para ver quem estava sem calça ou com calça… Mas aquele foi um momento de muito constrangimento. (Depois de ter desfilado no Sambódromo, no Rio de Janeiro, a modelo Lilian Ramos posou ao lado do presidente vestindo apenas uma camiseta curta sobre o corpo nu – os flagrantes registrados pelos fotógrafos, postados abaixo do camarote, correram o mundo nos dias seguintes.)


Não sei se ele se recorda, mas fui o primeiro governador de estado a fazer a campanha do então candidato Lula. Logo que assumi o governo, nós o lançamos, em Ouro Preto. Nem candidato ele era. Depois, ao longo do meu mandato de governador, defendi a candidatura do hoje presidente Lula, junto com José Dirceu, a quem quero muito bem. Fui igualmente o único governador que esteve presente ao último comício de Lula, em São Bernardo do Campo, quando ele se debulhou em lágrimas. Também emocionado, deixei as lágrimas caírem, debaixo da chuva. Não sei se o presidente Lula se recorda , mas ele chegou perto de mim e disse: “Itamar, o que é que você quer?” Resolveu me mandar para a embaixada do Brasil na Itália. Pela afetividade, por ligações familiares lá, aceitei, mas com receio exatamente do problema que já tinha acontecido. (Logo depois de ganhar fama instantânea, em 1995 Lilian Ramos passou a viver justamente em Roma.) Fiquei bastante preocupado.


A foto da modelo, tirada durante um desfile de carnaval, comprometeu de alguma maneira a imagem presidencial?


Tenho a impressão de que não, porque eu estava ali inocentemente. Não convidei a modelo para ir ao meu camarote. Como disse, para saber se ela estava de calcinha, eu teria de pôr um espelho por baixo – ou, então, levantar a saia, o que eu não faria. Mas aconteceu de ela estar sem a calcinha. Não se pode ter medo de dizer que ela estava sem calcinha, porque ela estava, sim. É o que se verificou, depois. Mas repito que ela não foi convidada por mim. Alguém a colocou lá, alguém que se aproveitou de um descuido qualquer. Meu processo de liberdade, em que não me rodeio de muita segurança e deixo as coisas acontecerem, às vezes pode ser um erro. Alguém introduziu a modelo ali, maldosamente. Afinal, ninguém entra sem roupa num camarote, sobretudo no do presidente da República.


Aquilo causou um constrangimento público ao senhor?


Ah, muito constrangimento público, muito constrangimento…


Porque a foto teve até repercussão internacional…


Teve repercussão internacional. Tentei, depois, dar um telefonema para a modelo. Queria dar o telefonema para chamá-la e enquadrá-la. Tive de usar outro artifício, mas ela entendeu diferente. Terminou gravando o telefonema. O episódio causou um constrangimento internacional. Quem brincou comigo, numa determinada solenidade, foi o rei (Juan Carlos I) da Espanha. Havia um quadro. O rei chegou perto de mim e disse: “Meu caro Itamar, eis aí uma coisa de que você gosta…” Nós brincamos, tal a liberdade que ele tinha comigo. Mas aquilo me custou caro – um banzé danado. Eu é que fui prejudicado, porque todo mundo se beneficiou.


Que personalidade nacional ou estrangeira decepcionou o senhor na presidência?


De personalidade nacional não quero falar, porque eu poderia levantar uma celeuma que não me interessa nesse instante. Entre as personalidades estrangeiras, não me recordo de nenhuma que tenha me decepcionado. Sempre respeitei a personalidade e o modo de dirigir dos governantes. A gente aprende que não se deve interferir na gestão desse ou daquele presidente. Ao contrário. Mas houve duas figuras que me impressionaram. Uma pertence ao campo da religião. Pode-se até discordar da linha que ele seguia. Não quero debater a doutrina social da Igreja. Mas devo dizer que o papa João Paulo II me impressionou. Considero-o um peregrino da paz. Fiquei impressionado com a peregrinação que ele fez por uma paz que, infelizmente, até hoje, no século XXI, não conseguimos.


Hoje, vejo falar das relações entre Brasil e Venezuela. Mas Brasil e Venezuela, em minha época nas presidência, estavam de costas um para o outro. Fui o primeiro a visitar o presidente da Venezuela, Rafael Caldeira, depois que ele foi eleito. Vi que ele tinha um amor grande pelo Brasil. Ali, foi possível fazer com que Venezuela e Brasil voltassem a ter amizade. A aproximação foi tão grande que o presidente Rafael Caldeira tornou-se um dos primeiros presidentes a defender a entrada do Brasil no Conselho de Segurança da ONU.


São figuras que me impressionaram. O presidente Rafael Caldeira, pela simplicidade, pelo bem querer em relação ao Brasil e por seus desejos democratas. O Papa João Paulo II, por ser um peregrino da paz, uma figura notável.


Tive três encontros com o Papa. Dois encontros ocorreram aqui no Brasil. Um ocorreu em Roma, quando o presidente Lula me pediu que o representasse no Jubileu do Papa (em 2003). Fui um dos 16 que puderam cumprimentá-lo. O Papa já estava doente. A gente seguia todo o drama pessoal não do Papa em si, mas daquela figura humana. Ao me ajoelhar para pegar na mão de João Paulo II e olhar para a face daquele homem, me emocionei bastante. Quando disse que era brasileiro, ele respondeu: “Oh, brasileiro”. Olhou-me rapidamente nos olhos. Pude ver que ali estava um homem que claramente demonstrava, no olhar, uma tristeza profunda

sábado, 18 de junho de 2011

Ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso

Especial FHC 80 anos



RIO - "Arrependimento? Se for ficar na política, acho que poderia ter sido mais suave, teria me desgastado menos e conseguido mais". A crítica de Fernando Henrique Cardoso ao seu jeito presidente de ser combina com o bom humor e a língua afiada que mantém até hoje ao chegar aos 80 anos de idade. Completamente adaptado à vida da planície depois dos oito anos no Palácio do Planalto, o ex-presidente está de bem com a vida. É generoso ao falar de aliados e opositores -, mesmo se ainda se ressente de como foi tratado por Lula - mas não perde a oportunidade de rir dele mesmo e dos personagens do mundinho político brasileiro. Distante do dia a dia partidário, criou uma rotina prazeirosa, povoada por viagens, livros, amigos e filhos. Mora sozinho num amplo apartamento em Higienópolis - o bairro paulistano que ajudou a tornar conhecido como reduto dos tucanos - e é com gosto que passa as manhãs em casa, escrevendo dois novos livros - um de reflexões sobre o mundo contemporâneo e outro revisitando a obra dos pioneiros do pensamento sociológico e político brasileiro, como Joaquim Nabuco, Gilberto Freire e Florestan Fernandes.



- Nunca consegui trabalhar fora de casa - conta, revelando o vício do intelectual que detesta escrever de terno e gravata. - Já escrevi de pijama e até de calção, mas no Alvorada não dava para pisar naqueles tapetes de pé molhado - brinca.



O estilo sociólogo chique predomina na decoração do apartamento. É refinado, mas despojado e com marcas de uso. Pelas paredes e estantes, objetos de arte e quadros, muitos deles recebidos de presente na época de presidente. À vista, livros de arte, álbuns com fotos ao lado de Ho-Chi-Min numa viagem ao Vietnã, um tucano enquadrado e uma bússula pintada a óleo perto de uma grande mesa de madeira na sala de jantar. Em lugar de destaque, dois Mirós, uma foto de Dona Ruth e, na parede ao lado, uma imagem da casa onde nasceu, agora quase toda tomada pelas raízes de uma árvore, na Rua Bambina, em Botafogo, no Rio. Tem dois escritórios em casa, mas só guarda nas estantes uns 500 livros. A maior parte de sua biblioteca de 20 mil volumes está no Instituto Fernando Henrique, onde à tarde trabalha.



- Agora, quando eu quero um livro, tenho de pedir à bibliotecária. Fica um vai e vem... Quando estou escrevendo, vou procurar o texto que quero, o livro não está... Mas, na vida atual, morando em vários países, não dá para ter grandes bibliotecas em casa, desapeguei desde que a polícia (na ditadura) levou meus livros lá da casa do meu pai - diz, contando que agora viaja só com um iPad. Em sua nova rotina doméstica, mais de oito anos depois, ele não desdenha, mas não sente saudades da vida nos palácios de Brasília, onde não conseguia abrir uma porta e nadava observado por seguranças.



- Palácio é lugar de intriga. Se tiver imaginação, você acha que é rei. Mas, se tiver senso de realidade, percebe que mora mesmo é numa repartição pública - diz com humor.



Uma repartição pública com perigosas armadilhas, como a dos documentos oficiais protegidos por sigilo eterno que deixou para seus sucessores. Assinado no último dia do seu mandato, em 31 de dezembro de 2001, o projeto chegou à sua mesa numa pilha de papéis.



- Não recebi pressão nem do Itamaraty, nem dos militares. Mas alguém botou isso lá, sem ter passado pela Casa Civil.



Neste sábado, vai festejar o aniversário só com a família, mas o festival de comemorações promete durar. Neste domingo, a Osesp fará um concerto em sua homenagem. Semana passada, jantou na Sala São Paulo com 500 amigos, daqueles cultivados pela vida, nenhum deles encontrado na lista de Facebook. Em agosto, pretende fazer uma festa no Rio, mas a agenda por agora está cheia.



Nesses 80 anos de vida, em que momentos ou em que papéis o senhor se sentiu mais confortável?



FERNANDO HENRIQUE: Para ser franco, eu me sinto à vontade em muito papéis. Eu não desgostei do exercício da Presidência. Nunca me queixei de doença, cansaço, embora às vezes estivesse cansado. Eu não achava mau, assim como me adaptei imediatamente a outro estilo de vida (ao deixar a Presidência). Fui dar aula de novo. Aula é um modo de dizer porque em Brown (University), onde eu era professor-at-large, mas recebia alunos, dava seminários. Eu me adaptei. Depois, passei a ter funções em organizações internacionais, fui presidente do Clube de Madrid. Hoje participo do grupo do (Nelson) Mandela, que é muito ativo, negociações pelo mundo afora, uma porção de coisas. E participo de vários conselhos e fundações...



Mas no Palácio era possível conciliar os papéis de presidente e intelectual?



FH: Com dificuldade. Nunca deixei de ter um certo olhar distante, que é o do intelectual, o que é uma desvantagem na vida política.



Por que é desvantagem?



FH: Porque você se refreia, tem um olhar crítico, então não faz uma porção de coisas que os políticos têm que fazer. Você tem mais autocrítica, mais freios. Mas isso tem uma vantagem, que me ajudou muito, que foi não entrar no olho do furacão. Quando, por exemplo, atacam muito pela imprensa, ou a própria imprensa ou os políticos, percebo que estão atacando um personagem, não eu como pessoa. Sei me distanciar.



Como presidente, qual a principal lição que o senhor tirou para o pensamento do sociólogo, para a sua percepção da realidade brasileira?



FH: Você fica com uma visão muito mais rica e vê que as coisas são muito mais difíceis e complicadas. Os interesses são muito mais emaranhados, é muito mais difícil obter uma convergência para alguma coisa, e você não tem soluções simplistas para os grandes problemas. Se tivesse, estariam resolvidos. Você passa a ser mais tolerante, não no sentido de permissivo, mas entende mais o outro. Vê como são as pessoas. Acho que, em parte, a liderança presidencial tem de ser intuitiva, veja o Lula, mas, quando você tem um pouco mais de capacidade de análise, fica vendo por que as pessoas estão fazendo isso ou aquilo. Ao mesmo tempo que desculpa umas, condena outras.



Mas isso faz ficar mais pessimista ou otimista a respeito do mundo?



FH: Mais realista. Não digo pessimista porque dá para avançar. Meus colegas acadêmicos puro-sangue sempre ficavam um pouco horrorizados de ver como é que eu lidava com o que, para eles, é uma gente despreparada. Eu dizia que eles não eram preparados para umas coisas, mas muito bem preparados para o que eles fazem. E eu já tinha a experiência do Senado. Minha transformação de papéis foi aos poucos, porque fui senador por muito tempo. É verdade que era diferente; quando fui para o Senado, no tempo do governo Figueiredo, o poder do Congresso era pequeno, e a pressão sobre ele era menor. Mas depois veio a fase da Constituinte, que foi uma grande escola. Foi um momento muito rico da nossa História, e nunca estudado. Fui um dos relatores das regras para fazer a Constituição, eu e (Nelson) Jobim. Abrimos espaço para emendas populares, a quantidade de pessoas que se manifestou foi brutal. Então, você vê um país sonhando, às vezes delirando, às vezes com pesadelo... Fui forçado a participar dos processos de negociação. Era muito interessante o que estava acontecendo. E aí você vê como é intrincado mexer numa sociedade como a brasileira.



Qual a mais forte ilusão de sociólogo que a Presidência destruiu? O senhor entendia menos como agiam os políticos ou os empresários, o mercado?



FH: Os políticos eu entendia, mas a inexperiência maior era com o mercado. Não era fácil entender como funcionava o mercado financeiro. Naquela época, eram crises sobre crises. Muitas vezes a situação objetiva não era tão ruim, e a bolsa caía... Nunca houve pressão no sentido de que alguém vem aqui para pressionar. Isso não existe. Mas especulação (financeira)...



E as divergências dentro do governo?



FH: Também havia, mas você tem que mediar essas divergências e, quando necessário, tomar partido.



Foi um dos momentos mais difíceis do seu governo (a crise cambial de 99)?



FH: Sem dúvida. Foi a mais difícil de todas. Mas veja como há pouca compreensão de como é o processo real. A uma certa altura, o Köhler (Horst), que era o diretor-geral do FMI, veio ao Brasil, eu estava no Rio, e nos encontramos no BNDES. Saiu na imprensa que ele veio aqui para me dar instruções. Na realidade, ele veio aqui para me agradecer, porque para a eleição dele - o Schröder (Gerhard), que era o chanceler da Alemanha, tinha me pedido para apoiar o Caio Koch-Weser, um brasileiro, e eu concordei. Acontece que o Caio não foi aceito pelos americanos. Então, o Schröder me ligou de novo e pediu para eu ajudar com uns votinhos na América Latina para o Köhler. Havia um outro que era muito bom, o Stanley Fischer, que tinha ajudado no Plano Real, deu uns palpites. Mas, enfim, Köhler veio para agradecer, não havia pressão do FMI. Não é assim que as coisas acontecem. Mas o mais difícil, pessoalmente, vou dizer: é demitir um ministro que é seu amigo e que não fez nada de errado, mas a situação o obriga.



O senhor se refere a...



FH: Ao Clóvis Carvalho e ao Celso Lafer. É difícil.



O senhor acha que a presidente Dilma já conheceu esse lado amargo logo de início?



FH: Sim, não sei se na mesma proporção que eu, porque o Clóvis e o Celso eram meus amigos. Eles são hoje do conselho do meu instituto. Demiti o Xico Graziano, que está comigo também. No caso do Clóvis, o motivo foi um discurso que foi parar na imprensa como se fosse um choque com o que defendia o Malan. Você não pode permitir choque público com o ministro da Fazenda. Não era a intenção dele, mas intenção é uma coisa...



O senhor então discorda do que disse o ex-presidente Lula, que a opinião pública morreu?



FH: Eu discordo. Se tivesse morrido, não teria acontecido tudo o que acontece, inclusive agora.



E como o senhor vê o papel da opinião pública?



FH: O que é a opinião pública aqui? Antigamente era quem lia a imprensa. Basicamente era isso. Agora é quem vê a televisão e a internet. E isso faz pressão. Não morreu, não, é o contrário.



O senhor identifica um novo momento na sociedade, nesse aspecto?



FH: Ah, não tenho dúvida. E crescentemente vai ser assim, você vai ter uma influência cada vez maior da sociedade conectada, que se manifesta cada vez mais. É curioso porque essa conexão pode produzir "derrubamentos", derruba alguém, mas não constrói, porque não tem como fazer a coisa funcionar. É para rupturas. Veja o que aconteceu agora no mundo árabe. Dá o contágio, pega, e se movimenta. Agora, isso não dispensa a ação institucional. O problema hoje é que você tem uma sociedade que está se conectando crescentemente, e o lado institucional não sabe se relacionar com isso. Dá a impressão de que algumas instituições envelheceram, não percebem que têm que mudar e não sabem para que lado vão.



Por exemplo?



FH: Qualquer pesquisa de opinião põe o Congresso em último lugar. É sintoma de que a instituição não está sendo aceita pela sociedade tal como é. E a sociedade não toma conhecimento do Congresso. Sofre as consequências de algumas decisões, mas não se preocupa; no dia a dia, se preocupa com outras coisas. Pode ver: quais são os temas debatidos na internet e quais os debatidos no Congresso? São dois mundos. Acho que esse é o sintoma de um problema grave na sociedade atual. Como o Congresso é indispensável e os partidos também, é um problema. Porque não vai ter jeito sem partido e sem Congresso.



Não se pode dizer que é porque o Congresso brasileiro é muito ruim?



FH: Não, porque é um fenômeno que acontece no mundo inteiro.



O que falta para o Brasil chegar a ser um país de primeiro mundo? Quando o senhor saiu, admitiu que não tinha conseguido resolver a questão da segurança, e disse que o presidente que resolvesse isso...



FERNANDO HENRIQUE: O que falta? Não é renda, porque ela está encaminhada. As empresas brasileiras, privadas e públicas, avançaram. É uma coisa importante: a empresa pública brasileira, em função do que eu fiz, virou empresa, deixou de ser repartição pública, então ela tem capacidade. A Petrobras, por exemplo, não foi só quebrar o monopólio; nós mudamos como é que opera, para competir. Não estávamos preparando para privatizar, mas para funcionar como empresa privada, sem influência do setor político. Bom, então as empresas avançaram, a mídia avançou, parte da universidade avançou. O que não avançou? O acesso à Justiça. Toda a questão de segurança está melhorando, mas muito lentamente. Você não tem ainda cidadania. Tem acesso à educação, mas a qualidade deixa a desejar. Tem acesso à saúde, mas o problema também é de qualidade. Saímos da fase de escassez para uma fase do tem mas não serve, tem mas não funciona. Em vários aspectos. Talvez a coisa seja educação mesmo. Porque ter PIB alto é bom, mas a Dinamarca tem um PIB menor que o nosso...



O que deveria ser feito para melhorar a educação? O atual ministro da Educação diz que não pode ter um choque, que é um processo lento...



FH: É verdade. Eu não acho que o ministro atual seja um mau ministro. Paulo Renato foi um bom ministro. Portanto, a educação teve bons ministros. Deixe-me ser um pouco mais amplo. Acho que estamos um tanto sem estratégia no Brasil, no geral. Não estou falando só do governo. Tenho horror a essa ideia de que falta um projeto nacional, porque isso é uma visão totalitária, a famosa utopia totalitária. Acho que não é isso. Numa sociedade democrática você tem de ter uma convergência de objetivos. Não é alguém que, com uma alavanca de governo ou partido, faz. Essa é a grande diferença entre o PT e o PSDB. O PT acredita que o partido toma conta do Estado, e que o Estado muda a sociedade. Ele não acreditava nisso no passado. Ele nasceu da sociedade, mas esqueceu disso. No fundo, é mais autoritário. Mas precisa ter uma estratégia que seja convergente. O que todos queremos? Queremos passar de uma sociedade rica e desigual para uma só mais igualitária ou queremos mais que isso? Cuba e Coreia são igualitárias. Igualdade é um valor, mas não é absoluto. Precisamos querer mais do que isso, uma sociedade com valores de participação, democracia, liberdade, respeito ao indivíduo, de Justiça. Então, acho que não temos uma visão compartilhada do futuro. Aqui se tomam grandes decisões sem o país saber. As decisões sobre petróleo, ninguém discutiu. Sobre ter mais usinas nucleares, ninguém discutiu. Falta a sociedade se engajar nessa questão. Na educação é a mesma coisa. Vamos fazer o trem-bala! Por quê? Pode ser que seja necessário, mas não foi discutido. Voltamos a um período militar, em que você não transformava em debate público as decisões de Estado. Se não tem isso, somado a uma sociedade que não confia nas instituições, como ter uma convergência de todos? Não tem. Fica cada um por si e Deus por todos. E sabe quem manda? É o mercado, o que comanda mais hoje é o mercado, não o Estado. Eu sou contra isso. Numa sociedade democrática, não pode ser o mercado que comanda, tem que ser a sociedade.



Mas no seu tempo de presidente, quais foram os grandes temas? E acha que a sociedade se engajou e discutiu?



FH: Reforma agrária, previdência social, estabilização. Como é que fizemos a estabilização? Não foi impondo. Dissemos quais eram os passos, o tema... O Congresso discutia. Nos últimos anos, o Congresso perdeu ressonância na sociedade porque carimba medida provisória.



Mas será que a sociedade também não perdeu o ímpeto?



FH: É possível que sim, em decorrência da prosperidade. Isso não é culpa de ninguém. Estou aqui fazendo uma análise sociológica. Há uma desmobilização que vem junto da prosperidade. A prosperidade é boa, mas não é suficiente para se chegar ao primeiro mundo. Acho que estamos melhorando muito. Tenho 80 anos. Nasci em 1931. Pensa o que era o Brasil quando nasci.



O senhor nasceu com a revolução de 30.



FH: Junto com a revolução de 30, em que minha família toda estava metida. O que era aquele Brasil? Quanto havia de analfabetos? 70%, 75%. Hoje são 10%. Só havia uma estrada pavimentada, que ligava o Rio a Juiz de Fora. Quando vim para São Paulo, tudo o que vocês veem lá (apontando para a janela de seu apartamento, de onde se vê o bairro de Perdizes) era lama. Isso era o Brasil, não tinha estrada. Então mudou tudo no Brasil, mudou tudo, e para melhor.



Na sua biografia, o senhor disse que conheceu a pobreza por livros, que era uma consequência desse Brasil, onde a pobreza era uma coisa distante...



FH: Distante. Eu fiz pesquisa no início da minha carreira sobre negros. Andei muito em favelas, e você entrava na maior tranquilidade porque a diferença de classe era tão marcada que o pessoal não mexia. Estudei no Colégio Perdizes. Tinha a serraria do Maluf, que era do pai dele, nessa rua. Então, me lembro que tinha mais adiante a fábrica do Matarazzo. Na hora do almoço, ficavam os operários na calçada, comendo na marmita, e, se passasse alguém engravatado, eles abriam espaço... Então a sociedade do passado é inaceitável. A de hoje é mais igualitária, as pessoas reivindicam, olham cara a cara. Mudou para melhor.



Quais os grandes momentos de transformação no país nesses 80 anos? O primeiro choque, o senhor lembrou, foi dado por um Estado forte; não há uma contradição aí?



FH: Não, naquele momento não tinha alternativa. E até hoje o Estado é fundamental. Não gosto é da ideia de um projeto (imposto). Mas claro que foi, o Estado é fundamental, e até hoje. E, curiosamente, as grandes transformações econômicas do Getúlio, ele tentou não fazer pelo Estado. Volta Redonda, ele tentou fazer pela iniciativa privada, mas não tinha como ser. Quem fez a Embraer foi a Aeronáutica. E certamente haverá hoje muitas coisa que ou o Estado faz ou ninguém faz. A ideia de pensar que é só o mercado, não! O Estado tem um papel importante. Agora, o que não pode é ter autoritarismo.



Mas quais os momentos de grande transformação?



FH: Para mim, primeiro, a Segunda Guerra Mundial. Meu pai era militar, nós mudamos de novo para o Rio, Copacabana tinha blecaute, ensaios de bombardeios. Então, na época da guerra, o Brasil deu um salto porque fizeram a chamada substituição de importações forçada. Não podia importar, começou a se produzir aqui. Foi um boom da indústria têxtil e urbanizou mais. Mais tarde, Getúlio se beneficiou disso. Depois você tem um período bastante difícil que é o final do presidente JK. Ele fez o endividamento e fez a abertura também, não a abertura da economia, mas trouxe o capital estrangeiro para cá. Internacionalizou a produção daqui, não internacionalizou a economia brasileira, e fez Brasília, deu um certo otimismo. E, daí por diante, os anos 60 foram muito difíceis, veio o golpe e foi muito complicado. Em 70, houve crescimento econômico, mas os indicadores sociais não melhoraram tanto. Como houve uma explosão urbana, a administração pública entrou em colapso. Aumentou a desigualdade. Aí, quando chegou nos anos 80, isso ficou mais sensível, inflação, e não sei o quê... Nos anos mais recentes, para mim, o grande marco é a Constituinte, a Constituição, que assegura as liberdades, dá voz ao povo, permite organização, isso é consequência das Diretas já, das greves do passado. Daí por diante, não tem governo que não tenha que olhar para o povo, porque o povo taí, ele pode gritar, pode ir ao tribunal , ele reclama, não faz mais greve. No meu governo, acabou (greve).



Voltou a fazer agora...



FH: Agora um pouquinho, né, por causa da inflação. Então acho que a Constituição desenhou um futuro social-democrático para o Brasil, deu muita liberdade, inventou o SUS, permitiu reforma agrária, e com um problema: ela foi em 88 e o Muro de Berlim caiu em 89. Então ela manteve o corporativismo, com monopólios...



E isso não tem nada a ver com a social-democracia. Tem mais a ver com o PT?



FH: Nada a ver com a social-democracia, mas com o PT. A estrutura sindical getulista... O PT aderiu a isso. O PT na Constituinte era libertário, ele votou contra a estrutura sindical. Eu fui dos poucos que votei junto com o PT, para quebrar o fascismo que tem ainda hoje na CLT, para empresário e para trabalhador. Os dois se juntaram porque os dois se beneficiaram do dinheiro indevido, que é nosso, para manter essas burocracias enormes, sindicais, que não têm mais representatividade efetiva da base. Bom, de qualquer maneira, o segundo passo importante foi a abertura da economia no governo Collor, porque forçou o Brasil a entrar na competição. Fui ministro da Fazenda logo depois, e a pressão que eu sofria dos amigos de São Paulo era enorme para não continuar a abertura.



Foi por causa dessa pressão que o senhor não abriu tanto?



FH: Eu abri pouco, mas não foi por causa dessa pressão. Não dá para mudar tudo de uma vez. E ao mesmo tempo jogamos o BNDES para compensar porque várias indústrias foram abaladas. O BNDES teve papel essencial na reconstrução dessa estrutura, e continua tendo. Então o segundo passo foi esse. O terceiro foi a estabilização da moeda, com tudo o que isso significa. O quarto foi a reforma do Estado, que incluiu as privatizações, as agências reguladoras, transformar o Estado numa peça eficiente. Vou dar um exemplo: o SUS só havia no papel. Foi feito por nós. Hoje, bem ou mal, tem o SUS aí. Na Previdência ficamos canhotos porque fizemos só o fator previdenciário que o Congresso derrubou e o Lula vetou. Houve mais mudanças, menores. Criei o Ministério da Reforma Agrária, o Pronaf, revolucionamos a agricultura... E quinto passo: as políticas sociais, que começam no meu governo e explodem no governo do Lula. Essa é sequência das transformações mais recentes.



O que falta?



FH: Houve certos retrocessos na questão do Estado. Estão aí os aeroportos como prova pura disso. As estradas também não avançaram mais.



O Estado ficou mais forte.



FH: Mais forte para quê? Não está mexendo na infraestrutura. A economia ficou mais forte, e o Estado está fortalecendo uma economia forte, às vezes desnecessariamente, dando dinheiro para fusões, o que é discutível. Mas não houve uma expansão da infraestrutura. Porque ficou no Estado, e o Estado não tem os recursos, às vezes. Eu reitero: não sou privatista, não sou neoliberal, mas tem coisas que o Estado pode e coisas que não pode fazer. No caso dos aeroportos, é gritante que tinha que fazer concessão e não foi feito. Mesmo no caso da energia elétrica, o dinheiro que está indo para Belo Monte é público. Se quiser fazer o trem-bala, não tenho nada contra, mas bota dinheiro da iniciativa privada. Por que o meu, o seu, o nosso? As agências reguladoras perderam força, a Petrobras tem penetração política, então isso é retrocesso.



Mas e de bom?



FH: Primeiro, os programas sociais...



Pela análise do senhor, apesar dos retrocessos, não houve nada ainda que fizesse andar para trás, que comprometesse?



FH: Não. O PT vive dizendo: o PSDB não tem projeto. Como não tem projeto? Vocês (os petistas) estão cumprindo!



Mas o que o PT fez de bom?



FH: A expansão da política social. Eu não faria a politização dela, de (atuar como) novo pai dos pobres, não. Mas a expansão foi positiva. Na educação, acho que não paralisaram. Houve alguns tropeços, mas, no geral, historicamente, a linha está ascendendo, não está caindo.



O que pode atrapalhar essa linha ascendente?



FH: O que pode atrapalhar é o seguinte: A Previdência tem problemas, o sistema tributário também, o mercado de trabalho também... Não houve reforma nenhuma. Trocamos a reforma pelo bem-estar, e não houve um avanço grande de investimentos - agora está começando a ter. O crescimento está se dando mais pelo consumo do que pelo investimento. Isso vai até certo ponto e depois para. É o seguinte: o futuro vai depender de educação, tecnologia e inovação. O Brasil tem hoje uma situação privilegiada porque a China voltou a ter um papel central no mundo e ela precisa de comida e matéria-prima. E o Brasil tem espaço para continuar a plantar e tem boa mineração. Mas isso tem um preço: nossa indústria começa a dar sinais preocupantes, o número de empregos aumentou, mas os empregos são de baixa qualificação. País desenvolvido é país de emprego bom.



Mas está melhorando a qualidade do emprego.



FH: Não, não está. A formalização uma coisa positiva no governo Lula. Mas a propaganda diz "milhões de empregos", quando não é emprego novo. Passa a contar porque foi formalizado, mas já existia. Com essa mudança do mundo, o Brasil não pode dispensar o crescimento industrial. É normal que o serviço cresça bastante, em todas as economias. Mas qual serviço? De qualquer maneira, volta ao tripé: educação, tecnologia, inovação. Por quê? Vamos ter de competir. Temos que escolher: vamos ser bons no quê? Não podemos continuar com a visão autárquica que vem do passado de querer ser bom em tudo. Tem que escolher e fazer as apostas. Creio que o BNDES tem um pouco dessa visão. Estou falando de escolher em que setores um país tem que investir. Pega um país, a Coreia, que esteve muito atrás do Brasil e hoje está à frente. Tem de ter um certo ingrediente de pragmatismo na nossa formação, que não temos. Eu não sou pessimista quanto a nada disso, só estou assinalando que é por aí que temos que caminhar. E acho que essa coisa do governo Lula de que "eu sou tudo, o bom" e o outro é mau, isso atrapalha a convergência nacional.



O senhor está dizendo que o populismo, não só no Brasil mas em qualquer lugar, é um desastre para a convergência?



FH: É um desastre, não permite esse tipo de convergência, e fica então muito mais propaganda do que consenso nacional. E depois que o líder sai, cadê a propaganda?



O senhor considerou as privatizações um dos grandes avanços. Mas que coisa estranha acontece que, em toda eleição, ela vira um espantalho?



FH: Faltou luta do PSDB, faltou reafirmar com força que aquilo foi positivo. E é tão fácil! Nós não nos orgulhamos de a Embraer vender aviões no mundo todo? Temos quantidade de celular que cresce exponencialmente, e todo mundo gosta. A Vale é a segunda maior empresa de minério do mundo, nos orgulhamos disso, mas ao mesmo tempo...



Foi erro na comunicação?



FH: Sim, mas não só. A esquerda brasileira, e eu também, foi criada com a ideia de que se não é estatal não é bom. Uma parte importante do pensamento político brasileiro é assim, e no PSDB também.



Do que o senhor se arrepende nestes 80 anos?



FERNANDO HENRIQUE: Ah, aí você vai passar a tarde toda aqui (risos).



Do que mais se orgulha?



FH: Vou dizer uma coisa que pode parecer clichê. É da minha família. Eu tenho um apoio tão forte, tinha da Ruth e tenho dos meus filhos. Em todos os eventos da minha vida, o que não é fácil, é inacreditável. Meus filhos me ligam incessantemente e vêm aqui, se preocupam. O que me dá possibilidade de viver com independência e vigor é que tenho apoio brutal da minha família e dos amigos de muito tempo. Isso é necessário.



E o arrependimento?



FH: O arrependimento? Olha, se for na política... O resto eu não posso nem falar, porque tenho tantos... (Mas na política) é aquilo que eu disse, é conveniente ter a noção de que não dá para mudar tudo de repente. Acho que forcei demais para mudar a Previdência, e isso me custou muito caro. Não precisava tentar tanto. Nós queríamos endireitar o Brasil todo e de uma vez. Não é assim. Eu podia ter sido mais suave, me desgastaria menos e talvez tivesse conseguido mais.



Como era a rotina na Presidência?



FH: A coisa mais atormentadora é quando chega nove da noite, entra o chefe da Casa Civil com uma pilha de documentos para assinar...



E depois não se pode dizer que assinou sem ler, né?



FH: Mas não lê, né? Porque o que acontece é o seguinte: tudo passa por vários crivos, os dois principais são o advogado-geral da União e o chefe da Casa Civil. Passou pelo ministro, passou pela Casa Civil, pela AGU e depois pela Presidência. O chefe da Casa Civil, quando passa, ele te informa do que se trata. Se for uma coisa mais delicada, você discute. Nesta discussão que está aí hoje (sobre a manutenção do sigilo eterno para documentos de Estado)... Foi no dia 31 de dezembro de 2002, último dia do governo. Porque tem dois canais, ou vem pela Casa Militar ou vem pela Casa Civil. Bem, quando veio esse negócio, eu disse (depois): não é possível que eu tenha assinado isso. Aí chamei o Pedro Parente: vê se é possível que eu tenha assinado isso. Reconstituiu, não passou pela Casa Civil. Foi pela Casa Militar. Sem a assinatura do general Cardoso. Mas eu não sabia. E uma coisa me chama a atenção: nunca nem o Itamaraty nem as Forças Armadas falaram nesse assunto comigo, nunca pressionaram.



Então o senhor assinou sem ver? E quando soube?



FH: Quando saiu no jornal, um ano depois. Como eu assinei um negócio proibindo eternamente? Mas Lula nunca desclassificou. E surpreende que o Collor e o Sarney tenham se posicionado (para manter o sigilo eterno), então deve haver algum problema...



É porque está chegando perto do governo deles.



FH: Mas será?



Não faz mais sentido, mas dizem que a razão é a Guerra do Paraguai e que o Brasil não ficaria muito bem na fita...



FH: Houve outra vez em que assinei também, com parecer e tudo aprovado, uma coisa que deixou a Ruth furiosa, porque restringia o atendimento a aborto. Quando apareceu, você imagina lá em casa! Mas nesse caso tinha pareceres... passou por um canal do Ministério da Saúde. Aí, depois, pedi ao Congresso que rejeitasse, ele rejeitou.



Provavelmente era um período próximo de eleições...



FH: É possível. Então pode acontecer. Mas, que eu me lembro, foram esses dois casos. Agora é eletrônico, né?, mas eu me lembro de que o Hargreaves ia para a casa do Itamar, com pilhas e pilhas, e ele ficava desesperado também. É muito cansativo esse negócio de ser presidente, não sei por que o pessoal quer tanto... (risos)



Por que o senhor quis tanto?



FH: Pois é, por engano. (ri)



Duas vezes, presidente?



FH: Eu sou meio tonto...



O senhor reclamava muito da solidão do poder.



FH: Isso sim. Isso é insanável. Porque não é a solidão de pessoas. É que não adianta ter um monte de gente em volta, e você não pode partilhar. Porque, em geral, quando vem uma discussão para a mesa do presidente, é porque as pessoas não se entenderam antes, tem ministro brigando. Não vem coisa boa para o presidente. Só vem bola dividida. E a função da Casa Civil é arredondar a bola. Mas, quando eles não conseguem, vem para você, e aí você tem que decidir.



O senhor falava que o Palácio é um lugar de muita intriga...



FH: Palácio é um lugar de muita intriga. Eu fui funcionário das Nações Unidas - antes eu era professor -, e lá é uma burocracia pesada, a base de organização daquilo é inglesa, e tudo é hierarquizado, inclusive o número de janelas a que você tem direito na sua sala. Mais janelas, mais poder. Eu nunca fui muito desse tipo de coisa.



E no palácio...



FH: Eu mal conheço o Palácio da Alvorada. Eu conheço a sala onde eu andava, mas o presidente não vai às áreas de trabalho. O presidente anda com um séquito, e não dá. Quando o Lula se elegeu, eu falei com o Gushiken, que foi lá, que esse negócio de palácio é complicado, toma cuidado. Porque, se puser muito ministro no palácio, vai dar briga. Não é o ministro que briga, são as equipes. Quanto menos ministro no palácio, melhor.



O senhor já disse que no Palácio não pode haver dois fortes.



FH: Não pode. Tem que ter um único, porque se não vira briga burocrática, vira uma coisa...



E agora com três mulheres?



FH: Mulher talvez se entenda melhor. Em matéria de gênero, eu não entro. (risos)



Como é conciliar essa solidão povoada com o poder supremo que a função confere? O presidente se sente um pouco rei?



FH: Se você se deixar levar pela sua imaginação, vira rei. Se tiver um senso realista, vê que aquilo é transitório. Porque você mora numa repartição pública, por mais bonito... O Alvorada é lindo, a parte superior dele é isolada, e, no meu tempo, só morávamos eu e a Ruth. Eu nunca tive ajudante de ordem morando lá, ninguém. Só os garçons podiam entrar sem avisar. Mas você desce ali, e é uma repartição pública. Moram lá, entre guardas e funcionários do serviço, de 100 a 150 pessoas. Você vai passear no jardim, olha para trás, tem duas pessoas atrás de você. Então, você não está na sua casa, por mais que seja agradável. Você vai nadar, tem alguém te olhando para não morrer afogado. Ou para te afogar (risos). Agora, eu sempre procurei não mudar meu estilo pessoal de viver. Eu e a Ruth. Então, quando vínhamos para São Paulo, íamos para o nosso apartamento aqui. Sempre estive com os mesmos amigos, e aí não tem jeito. Você não vai ser rei. Você é um igual. Tem algumas restrições que são grandes, você não guia automóvel...



Não abre portas...



FH: Bom, isso eu sempre corria para abrir, mas sempre chegava alguém antes. Por que, quando terminou o governo, eu e Ruth fomos correndo para a Europa? Eu andei de metrô, fiquei num apartamento da dona Maria Sodré. Era bom, mas pequenino. De propósito, para cair na real.



O senhor não teme ser vítima de um conservadorismo moral com essa sua campanha a favor da descriminalização da maconha?



FH: Em qualquer outro país, eu temeria. A nossa sociedade é bastante aberta.



O que o levou a se interessar por esse tema?



FH: Depois que deixei a Presidência, disse que iria me afastar da política partidária. Disse que iria me afastar e procurar atuar no campo da política de participação cívica. Nesse caminho, o Kofi Annan me colocou como assessor dele para fazer um relatório sobre como a sociedade civil poderia ter uma conexão com a ONU. Depois fiz outro relatório sobre a Unctad. Fiquei presidente do Clube de Madri e organizei uma reunião sobre terrorismo e democracia na Espanha. Depois me meti na questão da Aids. Estive com o Mandela na Noruega, na França, e foi a partir daí. A droga faz parte do mundo global. Li um livro de um amigo chamado Moisés Naím (escritor venezuelano) que mostra como houve a globalização do crime. Foi por aí que entrei nessa questão da droga. Não pela coisa local. Guerra às drogas só não resolve. Você tem que mudar de combater só a produção para reduzir o consumo e dar tratamento e educação.



Se um filho adolescente chegar para o senhor e admitir que fuma maconha, o que diz?



FH: Você sabe que isso faz mal. Eu não posso dizer que é pior que o cigarro porque não é. Mas vou dizer que ele é livre para fazer isso, mas questionarei onde ele foi obter a droga, por que ele foi no crime? É melhor regular do que fingir que não existe o problema, porque o seu filho fuma, e ele vai comprar do crime. Agora, se for cocaína, crack, tem que ir para o tratamento.



Isso chegaria ao ponto de se vender livremente a droga?



FH: Não. O álcool não deveria ser vendido abertamente. Não é na Europa, nos Estados Unidos, onde menor de 18 não compra. Maconha tem dois problemas gravíssimos. Um é a intensidade, e o outro é que, para obtê-la, você vai ao crime. Eu não sou favorável à legalização.



O PSDB reagiu com preocupação ao seu engajamento, dizendo que essa não é a posição do partido.



FH: Eu até entendo e acho que essa matéria não está no momento de ser politizada.



Mas o senhor não teme que numa próxima eleição isso vire munição contra o seu partido?



FH: O Tarso Genro era a favor, o Paulo Teixeira é a favor. Não sou a favor das drogas. Sou contra o uso de drogas. As pessoas não viram o filme, têm de ver.



O jogo político favorece a hipocrisia?



FH: É possível que sim. Como você aborda esses temas eleitoralmente? Eles vão ser abordados em forma de chantagem. Já fumou maconha ou não? É a favor do aborto ou contra? Acredita ou não em Deus? Eu nunca disse coisas contrárias ao que penso. Sabe como eu respondi à pergunta se eu acreditava em Deus? Disse que isso não era pergunta que se faça. Religião é questão de foro íntimo. Você tem que perguntar ao candidato a prefeito se ele respeita as religiões e não no que ele acredita. Foi a minha resposta, e disso interpretaram que eu disse que era ateu. Na campanha, qualquer que seja sua resposta, vai ser feito assim. Perguntar essas coisas faz mal à sociedade, porque eles (os candidatos) não vão poder responder, e é só para atrapalhar. Esse tema não deveria ir para a política.



O senhor acha que a mágoa do presidente Lula em relação ao senhor é por ter perdido duas vezes no primeiro turno?



FH: Não sei se ele tem mágoa. Quando estamos juntos, a relação é boa. O Lula tem essa língua solta, e eu também. Acho que o Lula ficou mesquinho, e ele não precisava renegar o que estava seguindo para ter a glória dele. Ele achou que, para ele crescer, tinha que me botar para baixo. Um cresce no ombro do outro e vai ficando mais alto.



Como o senhor vê a postura da presidente Dilma?



FH: Foi diferente. Eu até telefonei para ela para agradecer. Eu fiquei feliz com a carta dela, que me deixou bem satisfeito. Ela reconhece algumas coisas. Meu antecessor, Itamar, embora ele se queixe, não há uma referência minha a ele que não seja elogio. Sem o Itamar, não haveria o Plano Real. Eu acabei de falar do Collor, que fez a abertura. História é História, você não pode borrar a História. (...) Acho que é muito pretensioso você imaginar que os outros não fizeram nada. Se eu dissesse o que o Lula diz, eu seria execrado. O Lula não é (execrado) porque foi trabalhador, pobre, e isso dá a ele uma espécie de imunidade para dizer coisas que não são aceitáveis. Agora, acho que chega.



O senhor nunca voltou aos dois palácios?



FH: O Lula nunca me convidou para tomar um café. Tanto o Itamar quanto o Sarney foram ao Palácio. Fiz de propósito um gesto para o general Geisel, o convidei para almoçar. Fiz isso porque tinha sido o primeiro presidente punido pelo AI-5 e eu queria dizer que acabou aquela época. Não iria esquecer o que aconteceu, mas a época é nova. É uma coisa de civilidade. A Dilma me convidou para ir lá. O Lula me convidou para ir com ele ao enterro do Papa, e eu fui. Acho errado isso (de Lula nunca ter chamado para um café, uma conversa), tanto mais porque eu e o Lula tínhamos relação antiga. Vou dizer uma coisa: quando houve o mensalão e razões óbvias para o impeachment do Lula, eu disse que não achava uma boa. Justifiquei que eles iam colocar as ruas contra nós e, por outro lado, ficaria uma marca indelével muito ruim para o país.



Como o PSDB pode fazer essa aproximação com o povão?



FH: Como temos os governos de São Paulo e Minas? Porque temos o apoio do povão. Essa é uma outra imagem que o PT joga. A diferença não é povão no voto, mas o mecanismo organizado de controle de movimentos sociais, que é o que eles têm. O PT tem o controle dos movimentos sociais. Como todos os sindicatos mamam na mesma teta, que é o dinheiro público, está tudo acalmado.


O período de grande crescimento econômico não facilita essa identificação?

FH: Sem dúvida. A economia está por trás de tudo.
Ao sugerir que não houvesse impeachment de Lula, o senhor não agiu conforme aquele pensamento político brasileiro de ser conciliador sempre?

FH: Não. Eu acreditava que eles iam mobilizar a sociedade, e você não faz impeachment sem o povo. Aí vira golpe, e iam nos acusar de golpismo a vida inteira. Segundo, foi essa consideração mais histórica. Eu apoiei que o PSDB levasse o caso para o tribunal, porque aí poderia haver a nulidade da eleição. Mas seria uma coisa traumática. Não sei se seria bom para a consolidação da democracia.


Reportagem especial concedida ao jornal O GLOBO.

FHC celebra o aniversário de 80 anos com um balanço de sua trajetória

Politica - Brasil


São Paulo — Nas duas últimas semanas, não param de chegar pacotes embrulhados para presente no número 367 da Rua Formosa, no centro de São Paulo. Ali funciona o Instituto Fernando Henrique Cardoso, onde o ex-presidente despacha todas as tardes. No instituto, inspirado nas fundações americanas e mantido com recursos de empresas privadas e um naco da Lei Rouanet, para digitalização do acervo, a maior joia é o próprio FHC. Ele completa 80 anos amanhã com uma disposição de fazer inveja aos mais jovens. Escolhe entre uma ou outra conferência no exterior (“faço palestras em quatro línguas, sem tradutor”). Frequentemente, é consultado para falar sobre a descriminalização da maconha. De forma tímida, reserva espaço na agenda para







Retomar a vida afetiva, três anos depois de se tornar viúvo. “Não namoro bastante porque seria ridículo um velho namorar assim.” E não se furta a participar de discussões ligadas ao PSDB. Quando requisitado, diga-se. Na última quinta-feira, FHC mudou parte da rotina. Encastelado em função de uma gripe — “a saúde não é mais a mesma” —, recebeu a reportagem do Correio em seu apartamento de 300m² na rua Rio de Janeiro, no bairro de Higienópolis. Discorreu sobre vários temas nos 45 minutos de conversa. Separa Dilma do PT. “O PT é o rei da infâmia”, diz. Dilma? “Ela me parece uma pessoa íntegra, menos leniente com desvios.” Sobre a demissão de Palocci da Casa Civil, justo o principal ministro, diz que “são decisões difíceis, mas cabe aos presidentes tomá-las”.


Qual a maior alegria política que o senhor teve ao longo da carreira?



Minha maior alegria pessoal foi ter sido eleito duas vezes presidente. Na verdade, a alegria política é que eu fiz muita coisa pelo Brasil. Quando você chega lá, ou faz muita coisa ou não faz nada. A minha alegria é que mudei muita coisa. A minha intenção é continuar fazendo coisas por aí.


Qual a maior tristeza política?


Não ter conseguido fazer tudo o que queria e tentado demais mexendo em várias coisas ao mesmo tempo, quando talvez não fosse a tática adequada. Mandei tantas reformas estruturais que foi difícil tocar. A verdade é que não dei folga ao Congresso. O tempo todo estávamos de rédea curta, trabalhando, e agenda, agenda, agenda. A reforma da Previdência: se eu tivesse me concentrado num ponto só, talvez tivesse sido mais eficaz do que assustar tanta gente, quando o que queríamos era salvaguardar o sistema previdenciário. Eu talvez devesse ter desvalorizado a moeda antes de 1999. O sistema nosso deixou de ser fixo, era flutuante, mas flutuava pouco. A certa altura mudei a política, mas poderia ter feito antes. Se tivesse, teria evitado a crise de janeiro de 1999.


Na época, o PT dizia que o senhor não mudou por conta da reeleição.



Não tem nada a ver com isso. O PT é o rei da infâmia. Imagina se àquela altura a questão central ia ser a reeleição? Até porque eu ia ganhar a eleição. Os efeitos da mudança da moeda só se fizeram sentir meses depois. O mercado foi quem tomou uma decisão por nós. Insistimos em não mudar porque a equipe estava convencida de que não deveria. Eu estava convencido de que era possível mudar. Só que precisava de gente. Não se muda sozinho, não é um ato de vontade, Havia muita resistência na equipe. Tive que tirar o Gustavo Franco (à época, presidente do Banco Central). Eu gostava muito dele. Se ele tivesse ido para o governo depois de começar a flexibilizar, teria sido melhor. Nunca esteve em cogitação a relação entre câmbio e reeleição. Isso é invenção do PT. Outra invenção: as reformas pararam por causa da reeleição. Ora, reeleição foi em um mês, janeiro de 1997, e toda a população queria, tanto que ganhei. Quem é que não queria? Os candidatos a presidente da República e seus partidos, Lula, Maluf e alguns até do meu partido.


O senhor acha que a reeleição está consolidada no Brasil ou prefere um mandato de cinco anos?



Acho que está consolidada. Precisa ser aperfeiçoada com maior restrição ao uso da máquina. Mas é difícil. Fui candidato e não usei a máquina. No pleito de 2010, não era reeleição e o Lula usou. Não dá para reinventar a roda. Os sistemas que têm dado certo são os de reeleição. Para a construção de uma obra, quatro anos não são suficientes. Nem mesmo cinco. Já seis eu acho muito.


O senhor vai inaugurar um portal. Esse meio de comunicação já se consolidou como instrumento político?


No Brasil, ainda não é como nos outros países, mas é uma força e acho que está se consolidando. A nossa sociedade se modernizou. As pessoas se modernizaram e as instituições políticas, não. Há um descasamento entre a vida na sociedade e a vida política. O Congresso vai para um lado e a sociedade, para o outro. Tirar do Congresso o debate foi uma contribuição negativa do governo Lula. As grandes questões são decididas sem debate. Quem decidiu a expansão das usinas nucleares? Ou a mudança na lei do petróleo? E a construção do trem-bala? Pode ser certo tudo isso, mas não foi debatido.


Mas essas questões foram debatidas no Congresso.


Muito pouco. Sobre petróleo, por exemplo, só se debateu a distribuição dos royalties. E tudo em regime de urgência, urgentíssima ou medida provisória. O debate amorteceu em função da prosperidade, que é evidente, da possibilidade de o governo dar mais benesses, inclusive ao próprio Congresso.


O senhor falou em prosperidade. Isso significa que a presidente Dilma e o PT podem ficar no governo por mais tempo que os quatro anos? Como a oposição vai construir um discurso capaz de quebrar essa onda?


Essa onda (de prosperidade) no mundo está arrefecida. Você não tem a situação que tinha há dois anos para o Brasil. Agora teremos que enfrentar problemas mais complicados. Há um tremendo deficit de infraestrutura. Portos, aeroportos, estradas. E falta dinheiro. O governo vai ter que tomar medidas. A primeira ideia que tiveram (sobre a concessão dos aeroportos) achei boa. Eu tenho que dizer com franqueza: a Dilma tem me surpreendido.


Em que pontos ela o surpreendeu?


Por exemplo, todo mundo diz que a Dilma é uma pessoa agressiva. Comigo não foi de forma alguma.


E na parte administrativa? Ela agiu certo ao demitir o ministro Palocci?


Ainda é cedo para julgar. São decisões difíceis, mas cabe aos presidentes tomá-las.


Qual a sua opinião sobre repassar a administração dos aeroportos à iniciativa privada?


É bom que se faça. É corajoso. Isso requer que as agências reguladoras funcionem.


E como vê essas agências? Certa vez, o senhor disse que criou esses mecanismos de forma a deixar o Estado mais leve, a infraestrutura seria tocada pela iniciativa privada.


Exatamente, desde que as agências controlassem o bem do consumidor, com fidelidade aos contratos. As agências não deveriam ser politizadas. A Agência Nacional do Petróleo foi anulada. Hoje, a Petrobras reina sozinha. A ANP está cheia de pessoal do PCdoB e do PT. Agência não é para isso. Na questão dos aeroportos, é bom que a agência tenha vigor para fazer concessão. O setor privado vai sempre puxar para interesse próprio. O Estado tem que estar presente para que não haja distorção.


A Dilma lhe enviou uma carta elogiosa.



Vi com prazer. Ela foi generosa. Reconheceu o que o antecessor costumava dizer que não era assim.


Algumas notas dizem que o senhor está magoado com o Lula. É verdade? Ainda espera uma ligação dele para cumprimentá-lo pelo aniversário?


Não estou magoado. Ele nunca me ligou por aniversário algum. O Lula e eu, quando estamos juntos, nos damos bem. Agora, ele deve ter algum problema psicológico, tem dificuldade em fazer gestos comigo.


A interlocutores, ele disse ter mágoa em função das campanhas, críticas em tom agressivo.


Isso não. Uma vez o Lula foi lá me ver, no Palácio, quando eu era presidente. Ele tinha perdido a eleição, em 1998. Depois que fui reeleito. Cristovam Buarque presenciou a conversa. Uma certa hora, eu disse: “Ô Lula, nunca vi você na tevê me atacando porque não queria ficar com raiva de você”. E era verdade, eu não via. O pessoal da máquina dizia que eu tinha que ver. Eu não via porque ele era agressivo. Outra vez, estávamos no Alvorada, eu, Ruth, ele e Marisa. Falamos de novo sobre isso e ele, “Ah, mas pessoalmente...”, e eu disse. “Então você depende: tendo gente na frente, pode dizer qualquer coisa, né?”. Não tenho mágoa do Lula. Conheço o estilo. Não é que me doa. Mas, do ponto de vista do Brasil, ex-presidente é bom que tenha uma relação civilizada. Infelizmente, não pude ter uma relação mais civilizada com o Lula.


A carta que Dilma lhe mandou, alguns viram como ponte entre governo e PSDB. Que interpretação o senhor faz?


Primeiro, acho que é uma coisa pessoal. E não é o primeiro gesto. Fui convidado para o almoço do Obama e ela me tratou bastante bem e vice-versa. Em segundo lugar, acho que ela entendeu que era melhor a distensão de um clima crispado. Mas acho que para aí. Não acho que ela queira brigar com Lula.


Uma leitura possível é que ela quer acabar com o clima de guerra entre PT e PSDB?



De alguma maneira, essa coisa cansou, porque é falsa. Os projetos são meio parecidos.


Onde PSDB e PT se afastam? É a disputa pelo poder pura e simples?


É essencialmente a disputa pelo poder. Dizem que um é de esquerda e o outro é conservador. Não é verdade. Não tem nada disso. Um é privatista, outro não. Não é verdade, está se vendo aí (questão dos aeroportos). Um não liga para o povo o outro liga, também não é verdade, e por aí vai. O que discrepa? O PT mantém uma certa visão de partido, Estado e sociedade que é diferente do PSDB. O PT ainda acredita que o melhor para o país é que um partido, eles, ocupe o Estado e que o Estado mude a sociedade. O PSDB não vai nessa direção. É mais republicano, no sentido de separar mais. Não quero com isso tirar o mérito do governo Lula, do que fez de expansão dos programas sociais. Sendo ele um líder sindical, tendo uma base ligada a esse setor, tem mais facilidade de atender aos reclamos do que outros governos. Agora, os programas sociais todos começaram no meu governo. Do Luz no Campo, distribuição de livros, as bolsas.


Foi correto juntar todas as bolsas no Bolsa Família?


Já havia uma tendência. Era uma questão técnica. As bolsas surgiram como uma proposta do Banco Mundial, hostilizada pelo PT e por muita gente. Depois, houve um movimento de criar um fundo para combate à fome, que o ACM capitaneou. Era dar comida. Isso não é correto do ponto de vista de políticas sociais gerais. Em certas situações extremas, sim, dar comida. Fora disso, tem que dar emprego, instrução ou auxílio transitório. Usamos a educação primeiro, fizemos a Bolsa Escola. E no Ministério da educação, tivemos um problema tremendo: quem iria receber a bolsa? Não queria que fosse por influência política. Criamos então o cartão da cidadania, que copiei do Marconi Perillo, que já fazia em Goiás. A mãe de família e não o homem ia lá sacar o dinheiro. Minha intenção era não politizar as bolsas, não fazer populismo. Quando começou a ideia de integrar — tinha Bolsa Escola, alimentação, vale-gás e tirar criança do trabalho forçado. Cada ministério olhava para o objetivo da bolsa. Ao juntar tudo, complica, cria uma burocracia nova, que não tem o mesmo interesse específico. Por isso, eu tinha resistência a juntar todas. Mas, tecnicamente, a CEF já estava fazendo os procedimentos porque é mais econômico. O que o governo Lula fez, além de juntar tudo, foi a apropriação política da bolsa, o populismo. E perdeu o objetivo. Aliás, o Fome Zero, sob esse ponto de vista, era melhor porque queria ensinar a pescar e não dar o peixe. Por que fui para a Bolsa Escola? Porque o objetivo é educação. O que liberta é o trabalho.


E a política externa? Está correta essa estratégia multifacetada do governo?


Está correta e eu comecei, ou melhor, o Sarney começou e depois seguimos. Não é verdade que era só Estados Unidos. No meu discurso de posse, como chanceler, eu disse que tinha que ir para a Ásia. E fui. Fui ao Japão, à Índia, à China, o primeiro a ir à Malásia. África também fomos. O PT gosta de dizer que começou a história. Já estávamos nessa direção. A diferença do Lula é que ele queria obter uma cadeira no Conselho de Segurança.


O senhor não acha isso correto?


Não vai haver essa cadeira porque não está havendo a mudança. Vamos ter uma cadeira lá, um dia. Mas não agora. O que eles fizeram? Abriram embaixadas. Isso custa caríssimo. Com o objetivo de obter essa cadeira, que não obtiveram. Boa parte das viagens e de apoios em países menores não foi outro senão político, de um protagonismo que não funcionou.


E em relação à ampliação de gestão do FMI, do Banco Mundial?


Acho corretíssimo. Não fiz outra coisa que não fosse pedir isso. Acho que será a médio prazo. Estava lendo um artigo de Ricardo Lagos. Mostra que há uma aceleração desse processo. Quando havia reunião do G-7, eu mandava cartas pedindo a regulação financeira. Apoiei a taxação de fluxos de capitais. Na reunião que tivemos na chamada governança progressiva, em Florença, com vários líderes internacionais, defendi essa tese e não foi aceita. A China cresceu e puxou todos os países.


Como é a vida de ex-presidente? O que o senhor faz no dia a dia?



Fico em casa pela manhã. Trabalho no computador, leio, escrevo. Nada pela manhã é voltado para o lazer. Almoço em casa e, à tarde, vou para o Instituto (Fernando Henrique Cardoso). Recebo gente, tem reuniões, seminários e não sei mais o quê.


No que o senhor se ocupa?


Logo que deixei a Presidência, resolvi desencarnar. Viajei, fui para a França com a Ruth, sem segurança alguma. Andávamos de metrô como pessoas normais. Voltei à vida comum. Depois fomos para os Estados Unidos e eu ficava na biblioteca do Congresso, lendo e escrevendo o livro A arte da política. Também andava de metrô. A Embaixada do Brasil nos oferecia um carro e eu recusava. Queria levar uma vida normal. Só quando era assunto oficial da Embaixada eu aceitava o carro. Nos Estados Unidos, assumi uma posição na Universidade de Brown conhecida como professor-at-large que, em tese, é um professor que faz o que quer, mas eu acabava dando aula magna, seminários e atendia alunos de graduações, o que eu adorava fazer. Fui convidado para a Universidade de Harvard, mas recusei. E olha que estava sem dinheiro. Foi aí que eu descobri que podia ganhar dinheiro falando.


Por falar em estar sem dinheiro, de onde vem essa sua fama de pão-duro?


Realmente tenho essa fama. Não sei de onde vem. A verdade é que eu saí da Presidência e fiquei sem dinheiro. Por causa disso, não era e nem sou consumista.


Hoje o senhor tem investimentos financeiros, dinheiro guardado?



Hoje, sim. Mas quando deixei o governo não tinha nada. Presidente da República não tem salário de aposentado. Assim que saí do governo eu sobrevivia com salário de aposentado da Universidade de São Paulo. Mas eu e a Ruth nunca tivemos aperto de dinheiro. Como professores universitários, levamos uma vida de classe média confortável.


A população tem na figura do presidente uma imagem de pessoa poderosa e com dinheiro. Não é?



Realmente tem essa imagem, mas não corresponde à realidade. Para você ter uma ideia, para eu comprar o apartamento em que moro hoje, tive de vender dois e ainda assim a soma não era suficiente. A editora Record me antecipou um dinheiro de um livro que eu ia escrever e assim consegui comprá-lo.


A fama de pão-duro então é injusta?


Não sei. Só sei que não gosto do ato de tirar o dinheiro do bolso. Se for para pagar com cartão, não ligo. Mas se for com dinheiro vivo, complica. Não gosto de dinheiro.


Como pesquisador, como o senhor vê essa polêmica dos documentos secretos?


Tenho uma explicação difícil de acreditar. No último dia do meu governo, 31 de dezembro de 2002, assinei uma pilha de documentos e decretos que alguém havia levado ao gabinete. Era uma pilha de decretos e assinei. Não tem nesse documento o nome do ministro Pedro Parente nem do general Cardoso, então tem boi na linha. Dois anos depois deu aquela confusão. A verdade é que nunca fui pressionado por nenhuma instituição nesse sentido, nem pelos militares nem pelo Itamaraty. A assinatura adveio de um equívoco e não porque esse ou aquele órgão me alertou.


Mudando de assunto, como o senhor está vendo essa briga dentro do PSDB que parece não ter fim?


Não é possível que o PSDB não aprenda com a história. Governamos São Paulo e Minas, os dois estados mais populosos e mais ricos. Ao unir São Paulo e Minas, temos chances boas de ganhar a eleição presidencial. Temos que ter a capacidade de unir esses dois estados.


O senhor se propõe a fazer essa unidade?


Eu não, já chega.


Na sua leitura, por que o Serra perdeu a eleição?


Por muitos fatores. O mais importante é que o Lula tem muita popularidade e jogou com a máquina, fez uma vasta aliança e teve recursos infindáveis. Tudo isso é verdade e conta. A gente tinha chance de ganhar.


O PSDB tem algum mea-culpa a fazer?


Sempre tem, não só do Serra, mas de todo o partido. O PSDB nunca foi forte em deixar uma marca e trabalhar essa marca. O partido erra ao esconder os benefícios das nossas gestões. Esconde a mim. Mas não estou disputando eleição, nem sou personalista para ir lá e brigar. Acontece que eu já passei da idade dessas coisas. Isso é um erro do ponto de vista do partido. A meu ver, o PSDB também errou ao não politizar as questões.


A violência no campo foi um problema acentuado em seu governo e, 16 anos depois, ainda persiste, principalmente no Pará. Esse tipo de barbárie não tem solução?


Na época do massacre de Eldorado dos Carajás, fui pessoalmente responsabilizado e acusado por PT e MST. O governador do Pará na época, Almir Gabriel, foi processado. Agora, que morreram camponeses e sindicalistas, ninguém acusou o Lula e a Dilma. A verdade é que, apesar de o Brasil ter um PIB não sei de que tamanho, não é um país civilizado completamente. Não é um país em que a cidadania exista pra valer.


O senhor disse que os partidos pequenos se organizam para usufruir de cargos do governo e que o Lula fez a política do toma lá da cá com o Congresso para governar. O senhor acha que a Dilma vai cair nessa armadilha?


Não, porque me parece que a Dilma é uma pessoa íntegra. Ela tem sido mais resistente nessa questão, mas é lógico que há limites para essa resistência. Não sei qual é a tese dela. Ela parece menos leniente com desvios.


O senhor defendia de maneira velada a descriminalização do uso da maconha quando era presidente e agora passou a defender abertamente. O senhor acha que o Brasil realmente está preparado, inclusive na questão da saúde pública, para lidar com o usuário e as consequências que o uso contínuo dessa droga acarreta?



O uso de todas as drogas faz mal, inclusive o cigarro, o álcool e a maconha. Todas as drogas fazem mal. Acho que temos que ter sempre campanha de prevenção. A meu ver, acho que até o uso do álcool deveria ser regulado no Brasil. Queria deixar claro que a minha posição não é do “libera geral”. A minha posição é: não basta pôr na cadeia. O problema é que não há receita geral que dê certo no Brasil. Sempre uso o seguinte exemplo: gosto de vinho, tomo quase todas as noites no jantar. Se tomar no almoço, prejudica o meu trabalho. Se eu pedir uma taça de vinho pela manhã, me levem para o hospital, pois estou doente. O mesmo vale para a maconha. Se a pessoa fumar o dia inteiro, vai ter problemas psicológicos.


O senhor está viúvo há três anos e é um homem bastante admirado pelas mulheres. Como está o seu coração? Já refez a vida afetiva?

 
Evidentemente, sou um ser humano. Mas isso não quer dizer que tenha alguém efetivamente, que vá casar e tal. Não penso nisso. Aos 80 anos, me casar seria uma temeridade. Além disso, tenho uma família forte e muito ligada a mim. Agora, evidentemente, me relaciono com muitas pessoas. Não namoro bastante porque seria ridículo um velho namorar assim. Não me incomodo em ser admirado de longe pelas mulheres. De perto, vamos devagar porque o santo é de barro e, nesse caso, o santo sou eu.

Agora que o Lula é ex-presidente e começou a dar palestras para sobreviver, assim como o senhor faz, já deu para sentir a concorrência do petista nesse mercado?



Imagina. Eu dou muitas palestras pelo mundo. Não tem uma semana que não receba até três convites para dar palestras fora do Brasil. Todas muito bem remuneradas e algumas até recuso. Eu dou palestra em quatro línguas, não preciso de tradutor. Não existe concorrência. Hoje, não faço mais tantas palestras porque não preciso de dinheiro. Passei a ser muito restritivo.

 
Entrevista concedida ao Jornal Correio Brasiliense