SAÚDE - BRASIL
Do criador do maior centro de transplantes do mundo ao
doutor-cientista que voltou de harvard para revolucionar o tratamento do
mal de alzheimer, conheça os médicos brasileiros que mudaram a história
da medicina mundial
Ao proferir o juramento de Hipócrates, todo médico recém-formado promete
exercer a nobre arte de curar seguindo os preceitos da honestidade, da
caridade e da ciência. Alguns poucos profissionais de branco conseguem
fazer bem mais do que isso: em bibliotecas, laboratórios ou salas de
cirurgia, eles desenvolvem conhecimentos e inventam técnicas que mudam
parâmetros e padrões de conduta. Alguns brasileiros fazem parte desse
grupo de excelência da medicina global. Suas técnicas são hoje
reverenciadas e adotadas por países como França, Estados Unidos e China.
O trabalho desses médicos é quase silencioso – “meus olhos serão cegos,
minha língua calará os segredos que me forem revelados”, diz o texto do
juramento –, não fosse por homenagens que recebem em prêmios mundiais,
reconhecimento supremo do ofício, mas de pouca repercussão fora da
academia. É o caso de José Osmar Medina, celebrado pelo seu trabalho no
Hospital do Rim, criado por ele e hoje o maior centro de transplantes
público do mundo. Ou de José Pedro da Silva, que recebe convites de
diferentes partes do globo para ensinar a técnica que mudou a maneira de
realizar operações cardíacas em crianças. Em um momento em que o Brasil
polemiza na busca por melhorar as condições de saúde pública trazendo
médicos de fora, GQ homenageia o trabalho de ponta de
cinco doutores brasileiros – três cardiologistas, um nefrologista e um
neurologista – que revolucionaram a medicina.
José Eduardo Sousaprimeiro médico a fazer cateterismo no Brasil e Criador do stent, ele é reverenciado dos Estados Unidos ao Japão

Aos 79 anos, a trajetória do médico maranhense José Eduardo Sousa
confunde-se com a história da cardiologia no mundo. Depois do curso na
Universidade Federal de Pernambuco e das residências no Instituto Dante
Pazzanese e na cardiologia pediátrica de Harvard, ele seguiu para a
Cleveland Clinic, famoso centro de cardiologia americano, onde o
presidente João Figueiredo se tratou. Ali, havia sido realizado pela
primeira vez um exame que revolucionaria a cardiologia: o cateterismo.
Com um catéter introduzido pela perna ou braço do paciente era possível
chegar ao coração e ver o grau de obstrução das artérias coronárias. O
ano era 1966, e o jovem Eduardo Sousa, que presenciou tudo, foi o
responsável por importar a técnica e fazer o primeiro exame de
cateterismo no Brasil. Em 1968, outra revolução: Adib Jatene,
ex-ministro da Saúde, fez a primeira ponte de safena nacional. Durante
anos, a única maneira de salvar esses pacientes era abrir o peito, em
cirurgias longas e de recuperação demorada.
Eis que um médico alemão criou uma nova técnica, a angioplastia com
balão, espécie de cateterismo com um balão que “sugava” a obstrução. E
foi novamente Eduardo Sousa, após uma temporada na Europa, quem adotou a
técnica no Brasil. “Mas apenas em 1999 entrei realmente para a história
da medicina”, orgulha-se o médico. A técnica proposta por ele consistia
em colocar uma prótese de metal dentro da coronária. Pela primeira vez
no mundo era usado o hoje famoso stent, um implante de aço inoxidável
inserido no coração via catéter. Desde que teve licença de uso liberada
no Brasil, em 2002, Eduardo Sousa já colocou stents em 5 mil pacientes
(ou 8 mil implantes, já que em alguns casos é necessário mais de um
stent). Em 2012, o médico lançou um livro em que relata as operações uma
a uma, com o acompanhamento de cada caso. É um dos maiores tratados
sobre esse revolucionário método. Mas Eduardo Sousa ainda não se dava
por satisfeito. Voltou a estudar e, em parceria com a indústria
farmacêutica, colocou uma droga chamada rapamicina no stent. Outra ideia
simples, e genial: com o remédio liberado no ponto da obstrução na
coronária, o paciente já não precisaria retornar ao centro cirúrgico –
estava curado.
Os bons resultados do stent farmacológico levaram o médico a ser
convidado a ensinar a técnica em países como China, Estados Unidos e
Austrália. “Quando falei no Japão fiquei surpreso, as pessoas me
conheciam”, conta. Ao longo da carreira, apresentou 600 trabalhos em
congressos internacionais, 1,5 mil em congressos nacionais e publicou
450 artigos em revistas especializadas.
Entre as centenas de homenagens recebidas, a que mais o emocionou foi o
TCT Career Achievement Award, de 2003, em Washington. “Havia 10 mil
médicos do mundo todo e fui o 12º a receber esse prêmio.” Toda a família
o acompanhou – a esposa, também cardiologista, os seis filhos e até a
mãe. “Fiz questão de levá-la de Pedreiras (a 200 quilômetros de São
Luís) para me ver receber o prêmio.”
Para manter a própria saúde cardíaca, o médico conta que é viciado em
se pesar, bebe o mínimo de álcool possível e não perde um jogo do
Palmeiras. Diante da situação do time este ano, em que disputa a Segunda
Divisão, o remédio tem sido mesmo assistir aos concertos da Sala São
Paulo.
José Pedro da Silva mudou a forma de fazer cirurgias cardíacas em crianças

O homem que mudou o mundo.” Foi assim que o americano Joseph Dearani,
da Mayo Clinic, um dos mais conceituados centros de pesquisas médicas
mundiais, apresentou o brasileiro José Pedro da Silva, no encontro anual
da Sociedade de Cirurgiões Torácicos, nos Estados Unidos, em 2012. Aos
66 anos, o cirurgião cardiovascular com especialidade em crianças é
responsável por revolucionar a cirurgia de Ebstein, que corrige uma
má-formação congênita que impede o sangue de circular pelos dois lados
do coração. Com sua técnica, um cone feito com o tecido do próprio
paciente, ele conseguiu que o sangue percorra seu caminho natural,
evitando novas cirurgias. Antes dele, o paciente teria de passar por
operações a cada dez anos, sempre. Agora, se tudo der certo, não volta
mais.
Seu feito foi publicado no Journal of Thoracic and Cardiovascular
Surgery, em 2007, e logo médicos dos principais centros de cardiologia
do Japão e Inglaterra enviaram profissionais para aprender com ele.
Hoje, Silva é recomendado pelo Children’s Hospital de Boston, ligado a
Harvard, para casos complicados. Tanto fez que virou alvo de
peregrinação: a família de uma criança americana salva por ele criou a
Ebstein’s Anomaly Foundation, fundação que custeia a vinda de médicos ao
Brasil para aprender com Silva.
O médico falou com a
GQ antes de entrar num centro
cirúrgico no Paraguai, onde operaria seis crianças. Dois dias depois, em
Londres, ele ensinaria sua técnica no Royal Brompton Hospital. Apesar
das dez horas de trabalho diário, José Pedro mantém o telefone ligado de
madrugada e não se incomoda em correr para o hospital. “Médicos têm um
pouco de super-heróis”, diz.
Erra feio quem entende a afirmação como empáfia. Ele mesmo foi salvo
por um. Silva nasceu na Fazenda da Faca, em Pirajuí, oeste paulista.
Como sua mãe não havia sido vacinada, sofreu ao nascer de tétano
umbilical e foi desenganado. Um médico chegado do Rio de Janeiro, com a
recém-lançada penicilina na mala, salvou o bebê. Seu pai também foi
salvo de uma tuberculose por um médico brincalhão, cuja lembrança nunca o
abandonou.
Estudou na zona rural e, sem cursinho, passou em medicina na
Universidade Estadual Paulista, em Botucatu. Para se manter, fazia
retratos: “Pintei todas as debutantes da cidade”. Depois da residência
no Hospital do Servidor Público de São Paulo, foi para a Cleveland
Clinic, referência mundial em cardiologia. Pai de duas meninas e de um
garoto de 6 anos, ele acaba de publicar uma nova técnica, a
“translocação pulmonar”, que ainda deve gerar congressos e salvar vidas.
Nas raras folgas, aprecia prazeres que chama de simples, como pintar,
jogar xadrez e caminhar na praia.
José Osmar Medina Pestanacriador do maior centro de transplantes do mundo, recebeu um prêmio de Harvard

Se não fosse a história de vida do nefrologista José Osmar Medina
Pestana, a trajetória desse médico poderia ser o enredo de um conto de
fadas. Nascido na zona rural de Ipaussu, interior de São Paulo, filho de
uma costureira e de um pedreiro, ele chegou a trabalhar como torneiro
para custear o cursinho que o ajudou a ingressar na Escola Paulista de
Medicina, em 1974. Hoje, aos 60 anos, é o responsável e criador do
Hospital do Rim, em São Paulo, que faz mil transplantes por ano. Mais de
12 mil pessoas já foram transplantadas, todas pelo sistema de saúde
pública. Essa marca faz do hospital que Pestana criou o maior centro de
transplantes público do mundo. E o credenciou a receber um prêmio em
Harvard, em novembro de 2012, pelas mãos de Joseph Murray, Nobel de
Medicina em 1990, o primeiro médico a realizar um transplante de órgãos
na história.
O senhor deve ter ficado lisonjeado, não? “Não, fiquei foi um bocado
nervoso”, conta o médico, com sotaque caipira e jeito tímido. Foi, na
verdade, um “prêmio tarefa”, em que durante três dias deu aulas para um
auditório em Harvard repleto de médicos do mundo todo. Ali, ele explicou
o sistema de estações, espécie de “produção em série” ao estilo das
montadoras de carros, que desenvolveu para tratar com eficiência (e
humanidade) seus pacientes. Após serem recebidos pela enfermagem, passam
por clínicos gerais, especialistas, psicólogos e nutricionistas – e são
atendidos pelos profissionais do pré-operatório à recuperação. Assim, a
partir de melhorias simples no tratamento, o número de transplantados,
que era de quatro por ano em 1983, chegou a mil.
No Hospital do Rim não há pacientes particulares: 90% dos tratamentos
são pagos pelo Sistema Único de Saúde e o restante por convênios. Apenas
em seu consultório ele atende de forma particular. O médico ainda faz
trabalho voluntário e orienta 30 alunos que entraram na Escola Paulista
de Medicina pelo sistema de cotas. “Eles passam mais de duas horas no
trânsito para estudar. Eu os ajudo na formação, já mandei 22 estudantes
para o exterior.”
Medina é casado e pai de dois filhos. Um deles cursa o quinto ano de
medicina na Santa Casa. Entre um compromisso e outro, o médico se dedica
a grandes causas. Participou, por exemplo, dos protestos de rua em
julho, quando deixou o jaleco sobre a mesa e foi para a Avenida Paulista
reivindicar. “Foi emocionante ver a moçada na rua, acho que se houver
mais comprometimento com o trabalho viveremos em um mundo melhor.”
Antônio de SallesEle criou o marca-passo cerebral que revolucionou o tratamento da obesidade e do mal de Alzheimer

Se nos anos 60 o grande desafio da medicina era o coração, hoje a
aventura é desvendar o cérebro.” Quem diz isso é o neurocirurgião
Antônio de Salles, de 58 anos, que voltou ao Brasil no ano passado, após
mais de 20 anos correndo o mundo. Nascido no Paraná e criado em
Goiânia, ele cursou a Universidade Federal de Goiás antes de partir para
o Medical College of Virginia, nos Estados Unidos, onde estudou trauma
de crânio e terapia intensiva. Anos mais tarde, foi admitido em Harvard,
onde especializou-se em cirurgia estereotáxica, que consiste em um sem
número de cálculos para tornar as operações do cérebro menos invasivas e
mais eficazes.
Dos Estados Unidos, seguiu para Suécia, onde iniciou sua carreira
acadêmica na Universidade de Umea. A escuridão do inverno, porém,
levou-o a buscar pontos mais ensolarados, e ele acabou na Universidade
da Califórnia. Na UCLA fundou o Serviço de Radio-Cirurgia e Estereotaxia
(intervenções pouco invasivas, como biópsias), do qual ainda é diretor.
Foi lá que começou a estudar as técnicas de neuromodulação, a
implantação de marca-passos no cérebro para tratar pacientes com
obesidade mórbida e mal de Alzheimer, por exemplo. A primeira cirurgia
do tipo foi feita por sua equipe em 1996. De lá para cá, já implantou os
aparelhos em 600 pacientes. “Bulimia, anorexia e até depressão também
podem ser tratadas com esse implante cerebral.”
Para trazer a técnica ao Brasil, o médico inaugura até dezembro um
centro cirúrgico de US$ 10 milhões, no novo prédio do HCor. O
laboratório abrigará aparelhos e computadores avançados, que o ajudarão
na criação do centro de neurociência do hospital paulistano. “Vamos
introduzir a neuromodulação cerebral no país”, diz.
Apesar de morar em São Paulo com a família, a esposa também
neurocirurgiã e o filho Lucas, de 6 anos (que quer ser médico), ele
mantém estudos e pesquisas laboratoriais em Los Angeles. A cada dois
meses, também atende a consultas por lá.
E não é apenas nos centros cirúrgicos que seu talento aparece. Salles
também é escritor – seu dia começa às 4h30, quando acorda para escrever
ficção. Seu primeiro romance Why Fly Over the Cuckoo’s Nest? (Por que
cuidar da saúde mental?, em tradução livre) está nas mãos do americano
Glenn Berenbeim, roteirista de séries de sucesso da TV americana, como O
Toque de um Anjo, exibida no Brasil pela Globo nos anos 90. Se tudo der
certo, além de aparecer como autor de artigos científicos, seu nome
poderá ser visto nos créditos de filmes de Hollywood.
José Carlos Pachón MateosCientista e médico, do laboratório dele saíram técnicas que facilitam as cirurgias no coração

Nossa entrevista estava marcada para as 11h de uma sexta-feira, mas ela
só pôde ser feita às 9h da manhã seguinte. Naquela dia supostamente
tranquilo, José Carlos Pachón Mateos, de 57 anos, emendou um
procedimento no outro e ficou 12 horas ininterruptas dentro de um centro
cirúrgico. “Eu nem sinto mais o tempo passar”, disse o médico, que
estava feliz pelo sucesso em ambas operações.
Em São Paulo desde 1979, o mineiro de Uberaba é hoje o diretor do
Serviço de Arritmia do HCor e também o responsável pelo Setor de
Estimulação Cardíaca Artificial do Instituto Dante Pazzanese de
Cardiologia. Fora do Brasil, ele é conhecido como o médico responsável
por criar técnicas capazes de curar arritmias graves com métodos pouco
invasivos, que devolvem o paciente à vida normal com apenas três dias de
repouso, em média. Antes dele, era preciso abrir o peito e o tórax dos
doentes, que levavam meses para voltar à rotina.
Uma de suas criações é a estimulação cardíaca pelo esôfago, técnica
celebrada em congressos europeus e que hoje é amplamente usada na
França. Por meio dela, é possível curar uma arritmia, com o uso de uma
pequena e finíssima sonda que chega ao ponto entrando pela perna do
paciente. Outra, a “estimulação ventricular bifocal”, que como sugere o
nome estimula os ventrículos em dois pontos diferentes, foi recentemente
experimentada em Taiwan. Mais duas técnicas para o tratamento da
fibrilação atrial – a doença que matou o jogador Serginho, do São
Caetano – e da síncope vagal maligna, que causa desmaios e apagões
inesperados, foram apresentadas e começam a ser usadas em diferentes
partes do planeta. Todas têm a mesma característica, são menos invasivas
e altamente avançadas.
Graças ao trabalho desse médico, fica cada vez mais distante a
necessidade de abrir o peito e o tórax do paciente – a maioria dos males
é tratada com um catéter que chega ao ponto com o auxílio de
computadores. Atualmente, o grande aliado de sua equipe é um computador
que permite ver o coração em 3D por dentro e batendo, para checar onde
estão as arritmias.
Filho de uma família de três irmãos médicos, Pachón também é pai de
três filhos médicos. “Digo que quando eles se formaram em medicina eu
realmente me reproduzi”, diz. Para ele, que entende a medicina como um
estilo de vida, esta era a área que mais abrangia física, química e
biologia, suas paixões. Por isso, além das cirurgias e do tempo que
passa em seu consultório, em Moema, ele comanda uma equipe de cientistas
em seu laboratório no Dante Pazzanese. É do cruzamento dessas frentes
que surgem as técnicas que vêm se tornando referência no mundo.