domingo, 24 de julho de 2011

"Via-crúcis" em busca de atendimento

Saúde - Natal,RN


Ricardo Araújo - repórter da tribuna do norte


Sob a luz do sol ou da lua, as realidades parecem permanecer inalteradas. Crianças chorando, pais impacientes. Com uma oferta de leitos e profissionais aquém do necessário para o funcionamento pleno das unidades de saúde públicas, parentes de crianças que buscam atendimento pediátrico, se tornam personagens de uma "via crucis". Tudo para garantir - o que é direito constitucional - assistência médica de qualidade. São 786 mil crianças, entre idades de 0 a 14 anos no Estado que recorrem, em algum momento de suas vidas, ao pediatra. Umas conseguem, a maioria não. Quase todas as vítimas das limitações da Saúde Pública, são crianças oriundas de famílias e áreas pobres da capital e do interior, expostas aos mais diversos problemas de infraestrutura básica e sociais.


Máquina de Raio X do Sandra Celeste está quebrada, e crianças precisam ir a outra unidade para fazer exame. É o caso da pequena Alice da Silva

Para atender a uma demanda que cresce a cada dia, o Governo Estadual e Prefeitura de Natal disponibilizam 400 leitos de enfermaria e 56 Unidades de Terapia Intensiva. O número, porém, é insuficiente. Dividindo-se a quantidade de crianças pelo número de leitos, chega-se a uma média de 1.723 crianças para cada leito. Salve-se aqueles que dispõe de plano de saúde particular. As filas, a quantidade de pessoas nos corredores das poucas unidades da rede básica de saúde que ofertam o atendimento pediátrico, configuram a realidade de milhares de potiguares. Em Natal, os pais que conseguem uma ficha para o pediatra se consideram vencedores. Clésia Correia, dona de casa, é uma delas.



Às 20h07min da terça-feira passada, Clésia Correia, mãe de Eduardo, de 5 anos, deixava o consultório médico do Ambulatório do Pajuçara, na zona Norte. No seu rosto, refletiam-se os sinais de cansaço por um dia de espera. Eduardo, estava disposto, mas já começava a questionar os motivos pelos quais eles ainda estavam ali há tanto tempo. "Meu filho, agora que terminamos a consulta com a pediatra, podemos ir embora", dizia Clésia com alívio.


Ela e mais uma dezena de mães estavam na unidade à espera de uma consulta desde as primeiras horas da manhã. O processo para retirada de uma ficha começa ainda de madrugada, por volta das 4 horas, quando as primeiras mães começam a formar fila. Sempre às segundas-feiras.


"É muito difícil. Precisamos chegar no máximo às 4 horas da manhã para garantirmos uma ficha. Nem sempre conseguimos", afirmou Clésia. No Ambulatório do Pajuçara, a pediatra atende somente às terças-feiras a um número fechado de pacientes.


O alívio de Clésia era inversamente proporcional à frustração de Josina Pereira, mãe de Laís, 4 anos. A menina reclamava de dores no estômago, febre e náuseas e foi levada à emergência do Hospital Maria Alice Fernandes pela sua mãe. Da recepção, elas não passaram. O argumento da técnica de enfermagem que aferiu a pressão e a temperatura corporal de Laís, foi de que ela não era uma paciente em estado grave e sugeriu que elas procurassem um posto da rede municipal de saúde.


"Onde, a uma hora dessas?", indagava Josina. Moradora do conjunto Vale Dourado, ela afirmava que desconhecia postos de saúde com pediatra na zona Norte em funcionamento durante a noite. "Não vou arriscar levar minha filha na garupa de uma moto para o outro lado da cidade (referindo-se ao Pronto Socorro Infantil Sandra Celeste, em Lagoa Nova). O jeito é voltar para casa e auto-medicar", lamentava. Como vendedora, Josina dizia que não tinha condições de pagar por um plano de saúde. "A gente fica de mãos atadas. Ou pago um plano ou compro comida".


A peregrinação de Clésia e Eduardo, Josina e Laís, reflete o cotidiano de milhares de famílias potiguares que dependem de atendimento pediátrico nos hospitais públicos. Em todo o Rio Grande do Norte, somente uma unidade é referência no atendimento às crianças, que é o Hospital Infantil Maria Alice Fernandes. Recentemente, a Secretaria Estadual de Saúde (Sesap) restringiu o atendimento na unidade aos casos de urgência e emergência e aos pacientes encaminhados pelos postos de saúde de Natal e interior.


"Desde que ocorreu a mudança, nós conseguimos melhorar o nível de atendimento ao paciente do Maria Alice Fernandes", analisou a médica pediatra Katleen Azevedo, durante o intervalo do plantão noturno. Em contrapartida, ela afirmou que a decisão acabou prejudicando grande parte da população da zona Norte, que não dispõe de um hospital infantil municipalizado na região, que é a mais populosa da capital. "O que falta é o Município assumir o papel de atendimento pediátrico básico".


No Pronto Socorro Infantil Sandra Celeste, o principal problema é a alta demanda atendida pelos quatro pediatras - quando a escala está completa - que trabalham em cada turno. Os percalços, porém, vão além. De acordo com uma funcionária cuja identidade será preservada, as recorrentes faltas de medicamentos, insumos e de mão de obra especializada, são questões que precisam ser resolvidas urgentemente. As reclamações são antigas, os problemas são diários. A solução, permanece uma utopia para quem depende da Saúde Pública.


Secretários reconhecem deficiências no atendimento


Para o secretário estadual de Saúde, Domício Arruda, as modificações realizadas no perfil de atendimento do Hospital Infantil Maria Alice Fernandes, contribuíram para uma melhoria no atendimento prestado e atendeu a um Termo de Ajustamento de Conduta assinado junto ao Ministério Público. "O MP recomendou que todos os pronto-atendimentos dos hospitais estaduais fossem fechados. Adotamos a medida no Maria Alice Fernandes e restringimos o atendimento aos casos de urgência e emergência".


Sobre o plano de expansão da rede estadual de Saúde pediátrica, o secretário afirmou que a Sesap está analisando o arrendamento do Hospital da Unimed em Mossoró, onde passará a existir nove leitos de UTI pediátrica, que hoje se resumem somente a Natal. Ele ressaltou, entretanto, que a assistência pediátrica ainda é muito pobre e responsabilizou o atendimento básico nesta especialidade aos municípios. Além disso, ressaltou a dificuldade em contratar pediatras, fato comum atualmente em todo o Brasil.


Já secretária municipal de Saúde adjunta, Ariane Rose Souza de Macedo, rebateu algumas críticas feitas pelos próprios usuários do sistema municipal. Uma das reclamações, diz respeito à constante falta de medicamentos e insumos no Pronto-Socorro Infantil Sandra Celeste. "Atualmente, a unidade está abastecida", afirmou a adjunta. A realidade, porém, diverge do discurso. Há dias, a máquina de raio-x do complexo estava quebrada. Os pacientes precisavam ser deslocados para o Hospital dos Pescadores, nas Rocas, para realizarem o procedimento.


Alice da Silva foi uma delas. Aos quatro anos, a menina enfrenta um problema antigo, reflexo da falta de saneamento básico e infraestrutura nos bairros periféricos. As ascaris lombricoides (popularmente conhecida como vermes) se proliferavam no estômago da criança e se tornaram um risco à sua saúde. Para diagnosticar o problema, a criança foi ao pronto-socorro infantil municipal, depois fez o raio-x no Hospital dos Pescadores, para ser, finalmente, encaminhada ao Maria Alice para internação imediata.


Sobre a expansão da rede, Ariane Macedo afirmou que alguns leitos serão abertos no Hospital dos Pescadores para o público infantil, mas não detalhou quando. Além disso, ela argumentou que não há pediatras em todos os postos municipais, pois os mesmos atendem em unidades tradicionais, como os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). A realidade, porém, destoa em alguns aspectos. Não há pediatra em nenhuma dos postos de atendimento do Programa Saúde da Família em Natal. Em muitos deles, não há sequer clínico geral.


Acerca da quantidade de leitos, Ariane creditou a falta deles ao número de pacientes de outras localidades que se dirigem para a capital. "Destacamos que o número de leitos seria suficiente para atender a população de Natal. Porém, em função da pactuação com outros municípios, existe uma defasagem na proporção de oferta e procura para o cidadãos natalenses", afirmou. A secretária adjunta não mencionou, em contrapartida, que as cidades que assinaram acordo com a Prefeitura de Natal realizam repasses financeiros para o pagamento e ampliação dos serviços.


Varela Santiago


A partir do dia 1º de agosto, o hospital infantil mais tradicional do Estado irá interromper a realização das cirurgias neurológicas infantis. A pediatra Águeda Trindade, afirmou que o hospital, que vive de doações e repasses do Estado e Município pelos atendimentos realizados, não tem condições de comprar aparelhos modernos para as salas de cirurgia.


"Para trabalhar com segurança, decidimos interromper este tipo de atendimento. A Sesap e a SMS já foram informadas há cerca de dois meses da decisão", destacou Águeda. Para manter a realização deste tipo de cirurgia, seria necessário adquirir equipamentos como aspirador neuro-endoscópico, tomógrafo e um novo microscópio.


Bate-papo
» Lana Azevedo - pediatra

"Sofremos com a sobrecarga de trabalho"


Como a senhora define o cotidiano de um hospital pediátrico?

 
O dia a dia de um pronto socorro pediátrico não é estressante apenas para as mães que buscam atendimento para seus filhos. Nós, profissionais, também sofremos na pele com a sobrecarga de trabalho. Vivemos diariamente situações limite, que colocam à prova todo e qualquer aprendizado adquirido na universidade.


Onde os problemas se originam?


O problema começa porque o número de pediatras é insuficiente para atender a demanda crescente. As filas nos postos de saúde vão se formando e a pressão aumentando. Temos que atender uma criança de cada vez e com toda a calma - os pais querem atenção máxima para seus filhos e estão certos. O problema é que se você demora na consulta, as outras crianças que estão lá fora, choram e os pais reclamam. E por causa disso quem trabalha com pediatria sabe o quão comum são os tumultos nas salas de espera.


E a qualidade do serviço?

 
O serviço prestado pelas unidades de pronto atendimento voltadas para o público infantil vem sendo distorcido. O pronto-socorro pediátrico tem um papel importantíssimo na saúde da criança porque deve atender os pacientes em caso de emergência, crianças em crises de asma, convulsões, falta de ar e demais casos em que não há tempo para levá-los ao ambulatório. Mas o que vemos hoje é o oposto. Um local onde só se deveria tratar crianças emergencialmente, está tratando problemas simples, que poderiam ser tratados ambulatorialmente. O resultado disso são emergências lotadas, tempo de espera prolongados, pais, crianças e profissionais estressados.


Qual o resultado desta carga de trabalho desgastante?


A queda na qualidade de vida do profissional é uma realidade. Trabalhei por dois anos em um dos principais pronto-socorros pediátricos do SUS no estado. Passei por uma série de situações limite, de estresse máximo. Passei a ter dores de cabeça frequentes que evoluíram para enxaquecas. O diagnóstico foi que elas estavam aparecendo por causa de um alto nível de estresse. Precisei pedir desligamento do hospital, fui aprovada em um concurso e passei a dar plantão em uma outra unidade, relativamente mais tranquila.


Por que escolhestes a pediatria a cardiologia, por exemplo?

 
Sou pediatra, amo o que eu faço e sei que nasci para fazer isso. Cuidar de crianças é a minha vocação. E, apesar de todas as dificuldades, se pudesse voltar atrás faria tudo de novo. Só não concordo e me indigno com o pouco valor que o poder público dá para a saúde, para os profissionais que se matam de trabalhar em hospitais lotados e para a vida dos pacientes. Por mais que nós, médicos, tenhamos vontade de fazer, muitas vezes somos impedidos por problemas absolutamente evitáveis. E quando se é sensível a dor alheia, é ainda mais difícil trabalhar em ambientes insalubres como são os hospitais potiguares hoje (pediátricos ou não).

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